terça-feira, 21 de agosto de 2007

Imprensa:


O post que a seguir apresentamos é o excerto de um artigo escrito por Arnon Grunberg, autor de O Messias dos Judeus, publicado este ano pela Bico de Pena, para o Courrier Internacional, no qual relata com incrível pormenor a sua visita à base americana de Guantanamo, onde se encontram centenas de detidos, na guerra contra o terrorismo. Grunberg juntou-se a um grupo de jornalistas e fez a visita guiada pela base, desde as celas à cozinha, apresentando-nos neste artigo uma perspectiva profunda e detalhada, temperada com um humor apurado e um sentido crítico subtil, de como vivem os detidos e de como é gerido o campo.

«Viagem a "Guantanamo Bay Detention Camp"


No mês de Janeiro, o romancista holandês Arnon Grunberg visitou, na qualidade de jornalista, a base americana de Guantánamo, onde centenas de "combatentes inimigos" estão detidos, em segredo, desde 2002. Conta a visita muito guiada que fez, na companhia de outros correspondentes de imprensa.

Por Arnon Grunberg


Um dos destinos de férias actualmente mais procurados é, sem dúvida alguma, Guantánamo Bay - "Gitmo", para os iniciados. Não estou a falar dos cerca de 395 prisioneiros que ali estão detidos como "combatentes inimigos". Estou a falar do fluxo contínuo de altos dignitários, advogados, representantes da Cruz Vermelha e jornalistas que visitam os "combatentes inimigos". No verdadeiro sentido da palavra, a designação de "visita" só se aplica à Cruz Vermelha, embora esta não esteja autorizada a divulgar o que observou, e aos advogados, embora estes nem sempre tenham a possibilidade de falar com os seus clientes. Os altos dignitários e os jornalistas podem, quanto muito, espreitar por entre as grades.
A viagem para este tão procurado destino começa por citações bíblicas. Muito antes de poder pôr os pés em Gitmo, o jornalista tem de trocar uma série de mensagens electrónicas com a "Joint Task Force Guantanamo" (JTFGTMO) instalada em Guantánamo para guardar, interrogar e manter vivos os "combatentes inimigos".
As mensagens de correio electrónico da JTFGTMO apresentam, no fim, excertos da Bíblia. Pequena antologia dessas citações: "E qual de vós poderá, com todos os seus cuidados, acrescentar um côvado à sua estatura?" (Mateus, VI, 27), "Aliás sabemos que Deus faz concorrer todas as coisas para o bem daqueles que O amam, daqueles que são eleitos segundo os Seus desígnios" (Epístola de São Paulo aos Romanos, VIII, 28).
Mas, na maior parte dos casos, a JTF conclui as suas mensagens com o aforismo "Mata o pecado, senão o pecado matar-te-á". Ao princípio, pensei que este aforismo era uma criação original da JTFGTMO. Mas depois descobri que era da lavra do teólogo John Owen.
É de crer que eu tinha morto o pecado que havia em mim porque, no fim de diversos procedimentos, informaram-me de que era bem-vindo a Gitmo - com a condição de esperar. Dezembro estava esgotado. Um representante dos "media" não entra em Gitmo durante o fim-de-semana. Lá, os fins-de-semana são "desmediatizados". O jornalista chega na segunda-feira e parte na quinta ou, excepcionalmente, na sexta. A partir do aeroporto internacional de Fort Lauderdale-Hollywood, na Florida, pode escolher seguir para Gitmo num voo da Air Sunshine ou da Lynx Air International.
A Air Sunshine estava fora de questão. Há limites para a ironia.
Na segunda-feira passada, à custa de algumas investigações, encontrei, num recanto do aeroporto, o balcão da Lynx Air. Fiz fila com um grupo de trabalhadores imigrantes filipinos, que trabalham em Gitmo em grande número.
Segundo um advogado que encontrei em Gitmo, os trabalhadores imigrantes ganham ali menos de dois dólares por hora [1,46 euros], mas a JTFGTMO ainda não confirmou essa informação. Os filipinos que estavam à espera à minha frente não pareciam fazer a mínima ideia do sítio para onde iam mas estavam na posse da preciosa "area clearance". Quem quiser embarcar para Gitmo tem, antes de mais, de apresentar a sua "area clearance", um documento que dá ao seu detentor autorização para entrar no local da base da Marinha. Para se ter acesso aos campos de Gitmo, é exigida mais uma "clearance" específica.
Depois de examinar o papel, a Lynx Air pesa os passageiros. (Uma colega que queria partir um dia antes tinha perguntado se ainda havia lugar no avião e responderam-lhe: "Isso depende do seu peso.") Depois de me ter pesado, o empregado da Lynx Air disse-me: "Volte às 3 horas." Às 3 horas, apresentei-me novamente no balcão, ao mesmo tempo que os trabalhadores imigrantes filipinos, alguns homens que pareciam ser advogados ou colaboradores de organizações humanitárias, ou talvez mesmo diplomatas, e dois colegas. Tal como os turistas, os representantes dos órgãos de informação reconhecem-se ao primeiro olhar.
Mantive-me afastado.
De repente, o empregado da Lynx Air exclama: "Sigam-me."
Os trabalhadores imigrantes, os homens misteriosos e os jornalistas seguem-no docilmente. O empregado abre uma porta e ficamos diante de um avião minúsculo. Embarcamos com rapidez, sem qualquer controlo de segurança. Quem tem uma "area clearance", está OK. Dentro do pequeno avião, um Fairchild MetroIII, é impossível estar de pé e não há casas de banho nem hospedeiras. Durante o voo, temos uma vista panorâmica sobre o "cockpit", o que é instrutivo.
O voo dura mais do que o necessário porque as companhias aéreas americanas não estão autorizadas a atravessar o espaço aéreo cubano. Isso só acontece no momento da aterragem em Gitmo. Quanto a este ponto, Cuba foi mais complacente.
Mesmo antes de aterrar, somos apanhados por uma tempestade tropical. Dentro de um hangar, aguarda-nos um homem vestido à civil, que controla mais uma vez a minha "area clearance", ao mesmo tempo que um soldado lança uma olhadela rápida à mala do meu computador. E, pronto, eis-me cá fora, a apanhar chuva. O Exército americano devia ter vindo buscar-me, mas não há exército à vista.
"Para onde vai?", pergunta-me um dos meus companheiros de voo.
"Não faço ideia", respondo.
"Então, não posso dar-lhe boleia."

Passado pouco tempo, vêm juntar-se a mim dois colegas, Michelle e Pete, que trabalham para "The Toronto Star", ele como fotógrafo e ela como repórter.
"É a primeira vez que vem a Gitmo?", pergunta Michelle.
Digo que sim.
"Nós já viemos uma vez", diz Pete.

Só estou ali há cinco minutos e já fui desmascarado: sou um caloiro de Gitmo. E não consigo deixar de pensar no aforismo da JTFGTMO: "Mata o pecado, senão o pecado matar-te-á."
É impossível emitir uma opinião sobre os campos de Guantánamo Bay sem responder a esta pergunta: estaremos em plena guerra mundial contra o terrorismo ("Global War on Terrorism", GWOT)? Se estivermos de facto perante um fenómeno como a GWOT, se há boas razões para isso, então é preciso haver um centro de detenção onde os "combatentes inimigos" possam estar detidos até nova ordem. Mas, se não houver GWOT - ou, pelo menos, se nós não tomarmos parte nela -, a questão que se põe é esta: quem é o nosso inimigo? Para que servem estes detectores de metais?
[...]

Celas para deficientes


Depois do almoço, levam-nos ao Campo 5. Este campo de detenção não tem nada de provisório. Foi construído para ainda cá estar daqui a 60 anos. Depois de termos franqueado algumas barreiras, o comandante do Campo 5 conduz-nos numa visita guiada. Mostra-nos uma cela onde os detidos são interrogados. Há um pequeno tapete. O detido está sentado no cadeirão e há um mecanismo fixado ao chão, que permite acorrentar a perna no detido.
"Há celas especiais para deficientes", diz o comandante. Não sabe quantos detidos deficientes existem. Diante de uma das celas, está uma muleta de madeira.
Aqui, todos os guardas usam máscaras sobre o rosto, para se protegerem do já referido "cocktail" ( este "cocktail" é um composto de excrementos, urina, sangue e esperma) com que são borrifados de vez em quando. Mostram-nos dois detidos que foram levados para o ar livre. Vemo-los através de um vidro. Eles não nos vêem. Um deles é um homem com barba, que está sentado no chão e fala, gesticulando, com outro detido, este último de ar imberbe tem qualquer coisa de asiático, de chinês, na fisionomia. Os dois estão descalços. De repente, parecem ficar com medo. "Eles não nos vêem, mas vêem o 'flash' da máquina fotográfica", diz o comandante.
Em seguida, é a vez do Campo 6. Novinho em folha, é o último grito em matéria de prisões. Aqui, vemos os detidos nas suas celas. De três em três segundos, um vigilante passa diante das celas para se ver o interior. A porta é uma grade. Os detidos não se vêem uns aos outros, mas ouvem-se. Estão sempre a falar uns com os outros ou, pelo menos, fazem barulho. O campo 6 parece uma enorme gaiola de pássaros.
O comandante diz-nos: "As luzes são apagadas às 22 horas e voltam a ser acesas às 5 horas. Quando os detidos não querem tomar duche ou apanhar ar, respeitamos a sua vontade." Aponta para uma cela vazia e acrescenta: "Uma cela como esta é maior do que a minha sala de estar."
Este primeiro dia nos campos de detenção de Gitmo termina com uma visita às cozinhas. Sam, uma mulher já madura, simpática, de tipo asiático, é a responsável pela alimentação.
"Os detidos recebem cinco mil calorias por dia", informa-nos Sam.
"Não será demais?", pergunta o camarada de "The Daily Telegraph".

Sam responde: "Eles têm fome. Não fazem nada durante todo o dia a não ser comer e ficar sentados. Comer e ficar sentados."
Antes de nos deixarem entrar verdadeiramente nas cozinhas, distribuem uns chapelinhos de papel que desencadeiam o riso dos jornalistas. Sam diz: "Eles comem a mesma coisa que nós." Frase que irá repetir como um mantra. Passamos pelas despensas. "Gostam muito de alho", diz Sam, mostrando-nos as reservas de alho.
[...]
Todos os anos, o "Adminstrative Review Board" decide sobre a legitimidade da detenção do prisioneiro. A saúde mental deste não é tida em conta nessa decisão. "O que está em causa é aquilo que ele fez fora do campo", diz Haben. O detido só pode tomar conhecimento das acusações que lhe são feitas se estas não tiverem sido classificadas como "segredo de defesa".
"Uma informação obtida por meio da tortura pode ser utilizada contra o detido?", pergunto.
"Aqui, não há tortura", responde o capitão Haben. "Isso faz parte dos mitos alimentados no exterior. Tal como o mito segundo o qual haveria aqui detidos dos quais nunca mais ninguém recebera o menor sinal de vida.
Muitas das coisas que, em Gitmo, suscitam horror fazer parte do tratamento padrão nas prisões de alta segurança. Em alguns aspectos, a situação em Gitmo até é melhor. Em comparação com uma prisão de alta segurança que visitei recentemente na Polónia, a cozinha de Gitmo pareceu-me mais higiénica e a alimentação mais apetitosa. Em Gitmo, o risco de violação por outros detidos é fraco, coisa que infelizmente não se pode dizer de muitas outras prisões americanas e europeias.
É verdade que os detidos de Gitmo são mantidos na prisão sem julgamento. Inúmeros prisioneiros, noutras partes do mundo, e não apenas aqueles que são suspeitos de terrorismo, foram alvo de julgamentos que não merecem esse nome.
Não fui autorizado a falar com os detidos, embora a Convenção de Genebra não o proíba expressamente, como os americanos quiseram fazer crer, no começo da minha visita.
Guantánamo não pode ser comparada com uma institução penitenciária holandesa, mas nada do que se passa em Guantánamo - e isso parece por vezes ser esquecido - acontece em qualquer outro sítio. Aquilo que Gitmo tem de verdadeiramente único e a abundância de visitas de jornalistas.
A questão que subsiste é saber como, e por quanto tempo, vamos manter encarceradas pessoas que, na nossa opinião, já não têm lugar na nossa sociedade. A questão que subsiste é saber se a vingança é permitida pelo direito penal.
Enquanto este assunto não for debatido, Guantánamo continuará a ser o enésimo exemplo de indignação selectiva. Não: "indignação selectiva" é uma expressão do passado. Indiferença selectiva.»

Artigo integral na edição de sexta-feita, 3 de Agosto de 2007, do Courrier Internacional

Site do autor: http://www.arnongrunberg.com/