segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Crítica de imprensa:

«Génio disfuncional


Isenta de melodrama, pontuada de humor corrosivo, uma escrita capaz de nos levar das lágrimas ao riso.

Depois do êxito planetário de Correr Com Tesouras, a sua muito aclamada autobiografia da infância e adolescência, Augusten Burroughs (n. 1965) não perdeu tempo: avançou com A Seco, memórias de um criativo de publicidade dependente do álcool. Os livros são de 2002 e 2003, respectivamente, e o primeiro até deu azo a um divertido filme de Ryan Murphy com Joseph Cross no papel de Augusten Burroughs. A família (a mãe é escritora e poeta, o pai é director do departamento de filosofia da Universidade de Massachusetts Amherst) não gostou do que leu, e a Vanity Fair publicou em 2007 um artigo que pretende demonstrara manipulação de grande parte dos incidentes que Augusten Burroughs assume como biográficos. Polémicas à parte, o aplauso é geral: o primeiro livro Sellevision (2000), está a ser adaptado ao cinema, e as colectâneas de ensaios vendem-se como amendoim. Não esquecer que o autor é colunista das publicações de língua inglesa mais influentes dos dois lados do Atlântico.

À primeira leitura, pode parecer que Augusten Burroughs escreve no registo linear que faz escola desde Menos que Zero (1985), de Bret Easton Ellis. Mas, para todos os efeitos, Augusten não faz parte do Brat Pack, o grupo de autores (Ellis, Jay McInerney, Tama Janowitz, David Leavitt, Donna Tartt, etc.) que nos anos 1980 redefiniu o pós-modernismo americano. A sua escrita tem uma plasticidade capaz de nos levar das lágrimas ao riso. Os seus livros, e este em particular, estão isentos de melodrama, mesmo quando nacos de tragédia sórdida convivem com o humor mais corrosivo.

Tal como em Correr Com Tesouras, Augusten é o narrador e protagonista de A Seco. Começa por explicar como, sem habilitações formais, entrou e fez sucesso na profissão. Aos 13 anos havia sido entregue pela mãe, para adopção, ao seu psiquiatra: "Levei então uma vida de infelicidade e pedofilia, sem ir à escola e com comprimidos de borla. Quando finalmente consegui escapar, apresentei-me às agências de publicidade como um jovem autodidacta, levemente excêntrico [...] Omiti o facto de não saber soletrar uma palavra e de fazer broches desde os treze anos." Trabalho e talento fizeram o resto. Aos 25 anos faz parte dos "happy few" de Manhattan, mas a crescente dependência do álcool põe tudo em risco.

Augusten é gay, mantendo uma relação de enamoramento com um antigo amante: "Pighead e eu conhecemo-nos através de uma linha de telefones eróticos. Eu tinha acabado de me mudar para Manhattan [...] Contei-lhe a minha vida de publicitário, impressionando-o com a minha falta de formação académica para além da escola primária e com o meu sucesso numa idade tão jovem." Pighead é um jovem banqueiro de investimentos, de origem grega, seropositivo, que vive num apartamento faustoso na companhia de Virgil, o seu terrier de estimação. Por seu lado, Augusten, não obstante os 200 mil dólares de salário anual, sobrevive no meio do caos, com a casa atulhada de garrafas vazias, tantas que "enchem vinte e sete sacos gigantes, de tamanho industrial". Deu por isso no dia em que regressou a Nova Iorque após um mês de desintoxicação no Minnesota. Tem dificuldade em acreditar no que vê e perder sete horas a encher os sacos. O pior vem depois: a sua relação com Foster, dependente de crack; a partida de Hayden; a morte de Pighead. Nessa altura descobre que passou "meses a tentar matá-lo com os [seus] pensamentos". Quando Augusten por fim desmorona, os capítulos tornam-se sombrios, fazendo abrandar o ritmo dos diálogos (no geral bastante divertidos). Só o sarcasmo permanece incólume.
[...]»

Eduardo Pitta, Ípsilon, sexta-feira 5 de Setembro 2008

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