terça-feira, 4 de dezembro de 2007

Imprensa:

«O novo Perrotta tem religião, sexo e conservadorismo na era Bush

É um dos livros em destaque nas livrarias e imprensa americanas. “The Abstinence Teacher”, de Tom Perrotta (“Pecados Íntimos”), acabou de ser editado nos EUA. É um retrato moral e político da América que vai sair em Portugal daqui a uns meses.
Joana Gorjão Henriques

“Algumas pessoas gostam.” Algumas pessoas gostam de sexo oral, entenda-se. E há outras que não gostam que se fale disso com adolescentes. Com aquela frase, que cai como bomba silenciosa numa sala de aula, uma professora de Educação Sexual nos seus 40 anos é posta debaixo do tapete pelo puritanismo americano. Ruth, “The Abstinence Teacher”, é a mulher do título do novo livro do americano Tom Perrotta, autor de “The Little Children” (adaptado ao cinema por Todd Field e editado pela Bico de Pena como “Pecados Íntimos”). O novo Perrotta – que está em destaque nas livrarias e imprensa americanas – será editado pela mesma editora daqui a largos meses, muito provavelmente quando sair a versão cinematográfica filmada por Jonathan Dayton e Valerie Faris, os realizadores de “Little Miss Sunshine”.
Mãe de duas filhas adolescentes, liberal, sexualmente abstémia – mas não por opção, aconteceu depois do divórcio –, Ruth é obrigada a recalcar as suas convicções e a rever o programa das suas aulas à luz da virgem mas “sexy” JoAnn Marl (algures no livro, Ruth mostra um certo fascínio pela forma como JoAnn Marl controla os impulsos com o seu noivo “super hot”). Ao longo da centena de páginas exclusivamente dedicadas a Ruth, é JoAnn Marl quem representa o papel da personagem que traz a desordem, encarnando, por assim dizer, o mundo que Perrotta quer descrever, o fundamentalismo católico evangélico, tema cada vez mais presente nos EUA à medida que avança a influência política deste grupo – e com ele o autor quis retratar o choque cultural no interior na América.
Depois, JoAnn Marl praticamente desaparece; entra em cena Tim Mason, o treinador de futebol das filhas de Ruth, um ex-toxicodependente que encontrou a salvação numa Igreja Evangélica e põe as alunas a rezar depois do treino (e dá-se a explosão em Ruth, que até ali, surpreendendo-se a si própria, assumira o papel de hipócrita). A partir daqui, Ruth vai dividir o protagonismo com Tim – gesto arriscado do autor, mas não original, esse o de desviar repentinamente o foco da personagem central, algo que Perrotta viu como um desafio, confessou ao “The A.V.Club”.
“Mais tarde, quando Tim saiu, (Ruth) percebeu […] que desejava secretamente ver-se enredada numa daquelas narrativas sentimentais de ‘opostos que se atraem’, tão atraentes para escritores de sitcoms ou comédias românticas. […] Felizmente para Ruth, esta fantasia ridícula caiu imediatamente a seguir ao contacto com a realidade.” (pág. 183). A primeira parte é justamente o que acaba por acontecer; a segunda é uma boa piada (e uma estratégia narrativa) do escritor.
Mas, em “The Abstinence Teacher”, romance de subúrbio, o que interessa a Perrotta são os temas (aliás, ele começa sempre as suas histórias pelos temas ou pelo cenário, só depois vêm personagens e enredo): religião, sexo e conservadorismo na era Bush, numa América que tem andado demasiado preocupada em olhar para o fundamentalismo islâmico e pouco atenta ao que se passa no seu próprio país. Mais discreta, aparece a família, com a relação entre irmãos vista de forma ternurenta e a angústia dos pais quando percebem que os filhos afinal não são feitos à sua imagem, são pessoas que seguem caminhos muito opostos aos seus. O “New York Times” lembrava que, “com o programa de abstinência e disputas sobre o que pode ser ensinado nas escolas a serem frequentemente primeira página nos jornais, ‘The Abstinence Teacher’ atinge as falhas sociais importantes.”
De fora, diríamos que é também um retrato moral e político de uma América feito por um retratista que não tem especial vontade em se colocar de nenhum dos lados – ou pelo menos, que não faz dos evangélicos completos diabos, mesmo que use por vezes a ironia.

A eleição de Bush
Tom Perrotta, 46 anos, que cresceu num subúrbio, num meio trabalhador, com “pessoas com um olhar conservador sobre os valores sociais”, decidiu escrever este livro depois das eleições presidenciais de 2004, quando Bush ganhou ao democrata John Kerry, o que o deixou “perplexo”, sobretudo “pela sensação de que a direita cristã estava em marcha e tinha uma maioria política”. “Sabíamos que as coisas iam mudar a favor deles e realmente senti, como muitos, que talvez não os tivesse levado suficientemente a sério, não apenas como um movimento político mas como um fenómeno americano” (“The A.V. Club”). Não teve uma aproximação ao assunto como Tom Wolfe, disse ao “New York Times”, mas andou por algumas igrejas evangélicas e passou algum tempo a “googlar” coisas como “Christian Sex: The Godly Way To Spice Up Your Marriage”, o manual usado pela personagem Tim e pela segunda mulher, Carrie, que basicamente introduz a tal “nuance” humana em criaturas que podiam ser, aos nossos olhos, aberrações.
Perrotta deu por si a surpreender-se com o tema da abstinência – achava que seria uma coisa bem difícil de vender aos jovens numa cultura tão sexualizada como a americana, mas afinal “tem tido imenso sucesso”. “Temos sentido uma contracultura conservadora muito forte”, disse à CBS. À “Nerve.com” comentou: “Uma das coisas que mais me impressiona em toda esta coisa da abstinência é o total medo da experiência. Até uma coisa tão simples como ficar com o coração partido. Eu parti o meu coração duas ou três vezes e isso ensinou-me algumas coisas sobre as relações. Torna-nos mais espertos. Torna-nos mais doces para os outros. (…) Mas, se formos a uma reunião de abstinência, a mensagem do amor é: ‘O teu coração é uma coisa pura e de cada vez que alguém aparece arranca-te um bom pedaço dele.’”
Autor de seis romances, dois deles adaptados ao cinema (além de “Little Children”, “Election”, realizador por Alexandre Payne), e com uma escrita limpa e seca que se inscreve, segundo o próprio, na linhagem de Raymond Carver, Hemingway ou Tobias Wolff, Perrotta tem sido várias vezes referido como autor de romances de subúrbio – é o cenário dos seus livros. É difícil em “The Abstinence Teacher” encontrar personagens odiosas porque há a sensação que o escritor gosta de todas – até JoAnn é curiosa na sua provocação –, e se há coisa em que o autor está à vontade é no retrato feminino. Começou “The Abstinence Teacher” com Ruth mas, às tantas, deu por Tim Mason a sabotar a história. A sensação com que ficámos foi de uma certa perda: depois da construção inicial brilhante de Ruth, até onde é que Perrotta teria ido se deixasse que uma personagem feminina tomasse conta da narrativa?»


Ípsilon, Público, 30 de Novembro de 2007

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

Excerto:
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O Banquete do Amor


«– Olá – diz ele –, Charlie. Que diabo fazes tu aqui? O que é que se passa?
Quando me sento ao lado dele, consigo ver-lhe os óculos, que reflectem o quarto minguante da Lua e uma ténue estrela cadente. Na penumbra, ele tem um rosto suave e atraente, cabelos grossos encaracolados e um sorriso amável e desarmante, como o de um empregado bancário que ainda não decidiu se o nosso historial financeiro nos permite pedir um empréstimo ou não. Os seus olhos são grandes e pensativos, como os de um sapo. Concluo rapidamente que, se ele está sentado aqui fora, neste bando de parque, neste momento, é porque deve ser um homem particularmente infeliz, insone, atormentado ou mal de amores.
– Olá, Bradley – respondo. – Nada de especial. Vim dar uma volta. É uma noite de Verão e estou com insónias. Veja que também ainda estás acordado.
– É – diz ele, assentindo desnecessariamente com a cabeça –, é verdade.
Ficamos ambos calados, à espera. Por fim, pergunto-lhe:
– A que propósito é que estás a pé?
– Eu? Oh, estive ocupado até tarde, a arranjar uma janela de minha casa. O contrapeso da guilhotina soltou-se da roldana e eu estive a tentar tirá-lo de dentro da parede.
– Um trabalho que não é fácil.
– Pois não. Seja como for, desisti e vim passear o Bradley-cão, já que não conseguia consertar a janela. Lembras-te deste cão?
– Chama-se… como é que ele se chama?
– Bradley. Acabei de te dizer. Exactamente como eu. É mais simples chamar-lhe “Júnior”. Assim, não há confusões. É a minha companhia. Mas, pelos vistos, tu também não consegues dormir, pois não? – pergunta ele, de olhos fixos a meia distância, como se estivesse a falar consigo próprio, como se eu fosse uma intimação dele. – Já somos dois. – Recosta-se. – Três, se contarmos com o cão.
– Acordei a ver coisas – explico.
– Que coisas?
– Não me apetece falar sobre isso – respondo.
– Está bem.
– Oh, olha, acordei a ver manchas.
– Manchas?
– Sim, Uma espécie de manchas à frente dos olhos. Mais pareciam dentes de rodas.
– Como se fossem engrenagens ou uma coisa desse género?
– Acho que sim. Rodas com dentes a girarem e depois a aproximarem-se umas das outras, até começarem todas a rodar ao mesmo tempo, com os dentes encaixados uns nos outros. – Esfrego o braço, picada de mosquito.
Na sombra, um lado do rosto dele parece prestes a desmoronar, como se o esforço de fazer uma cara alegre tivesse finalmente fracassado e ele tivesse perdido o seu optimismo diurno. Suspira e coça o Júnior atrás das orelhas. Em resposta, o cão arreganha um enorme sorriso.
– Engrenagens. Nunca tinha ouvido essa. Pelos vistos, tu não dormes melhor do que eu. Somos dois soldados do exército da insónia. – Espreguiça-se e estica o corpo para inspirar fundo. – Uma irmandade. De homens e de mulheres. Sabias que a Marlene Dietrich era uma insone crónica?
– Não, não sabia.
– Sabes o que ela fazia para se entreter à noite?
– Não, não sei.
– Fazia bolos – diz-me ele. – Li isto no jornal de domingo. Fazia pães-de-ló e depois, durante o dia, oferecia-os aos amigos. A Marlene Dietrich. Tinha o ar que tinha, aqueles olhos, porque não conseguia dormir bem. Ora eu – diz ele, ajeitando-se no banco –, eu fico aqui quieto, muito quieto, como aquele tipo, como é que ele se chama?, o bom do Buda, a pensar no mundo, no mundo em que eu e tu vivemos, e chego a uma série de conclusões. Conclusões e soluções. Ultimamente, tenho andado a pensar em soluções extremas. Como se costuma dizer, problemas extremos requerem soluções extremas.
– “Soluções extremas”? De que é que estás a falar? E não me incluas na tua irmandade. Eu vim só dar um passeio pelo bairro.
– “Um passeio pelo bairro”! Meu Deus – diz ele, apontando-me um dedo como se fosse uma pistola –, tens sorte se um carro-patrulha não te levar dentro.
– Oh, eu sou uma pessoa respeitável – respondo.
– Ouve-me só as coisas que tu dizes. “Respeitável”! Estás vestido como um vagabundo. Um rufia. É ilegal andar pelas ruas à noite, nesta terra, não sabias? – Levanta-te para me olhar de alto a baixo, com ar interrogativo. Ao que parece, não gosta do que vê. – Dá-te um ar de perigo para a segurança pública. Acusam-te de vagabundagem e arrastam esse teu coiro para a cadeia. Já não é permitido passear à noite, a menos que tenhas um cão. O cão – aponta para o seu próprio cão – torna os passeios legais. O cão torna a coisa legítima. Eu tenho um cão. Tu devias arranjar um cão. É melhor um cão de gente fina, como um collie ou um golden retriever, um cão com licença do estado. Mas qualquer cão serve. Vai por mim: as pessoas felizes estão todas em casa a dormir, enroscadinhas juntas, imersas nos seus sonhos. – Diz estas palavras com desprezo. – Os bem-afortunados. – Senta-se, mas continua com ar alvoroçado. – Os malditos bem-afortunados… Então, conta lá: qual é o teu problema? – Dá-me um sorriso de gnomo. – Peso na consciência? Estás com um bloqueio e não consegues escrever?
– Não, já te disse. Acordei desorientado. Isto está constantemente a acontecer-me. Deve ser de andar a pensar num livro. Tenho de sair à rua para que passe. Seja como for, eu já tenho um cão.
– Não sabia. Onde é que ele está? – Olha à sua volta, fingindo que está à procura.
– A dormir. Ela não gosta de sair à rua comigo, à noite. Não gosta de me ver assim desoriendado.
– É esperta. Então quer dizer que não sabes onde é que estás? É isso?
– É. Mas neste momento sei onde estou.
– Talvez estejas demasiado metido no mundo da ficção. Bom, não ligues ao que eu digo. Mas, ouve, já que aqui estás, conta-me como é que esse teu novo livro começa. Qual é a primeira frase?
Ponho-me a tentar arrancar uma pastilha elástica do sapato.
– Não. Eu não funciono assim. Não conto essas coisas ao deus-dará.
– Anda lá. Sou teu vizinho, Charlie. Conheço-te desde… há quanto tempo é que nos conhecemos?
– Doze anos – respondo.
– Doze anos. Achas que vou roubar-te a tua frase? Eu nunca faria isso. Eu não faço essas coisas. Não sou escritor, graças a Deus. Sou um homem de negócios. E artista. Vá. Conta lá. Diz-me como é que o teu romance começa.
Recosto-me por um instante.– “O homem” – recito –, “– eu, e mais ninguém, ao que parece – acorda de sobressalto.”»

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Imprensa:

«Eduardo Mendicutti debruçado sobre a identidade

Não Tenho Culpa de Ter Nascido Tão Sexy é o primeiro livro de Eduardo Mendicutti a ser publicado em Portugal. Por trás do título "light", esconde-se "uma história sobre a identidade e a memória", na voz de um transexual. O Ípsilon foi descobrir o escritor. Sílvia Caneco

Eduardo Mendicutti tem uma vaidade. Tem uma vaidade e orgulha-se dela: "Dei aos homossexuais voz própria na literatura." As personagens dos seus livros são quase sempre de territórios à margem. São homossexuais, travestis, transexuais. Mas não são contadas, contam-se a si mesmas. Eduardo Mendicutti tem essa vaidade e não teme ostentá-la. "Ainda existe muita ignorância sobre como são essas pessoas. Há muitas etiquetas. Contadas pela voz dos outros, parece que são sempre iguais. Mexem-se assim, falam desta maneira. É preciso conhecer para poder dar uma imagem verdadeira", afirmou o escritor, na passagem por Lisboa para o lançamento de Não Tenho Culpa de Ter Nascido Tão Sexy, o primeiro exemplar da sua obra a ser publicado em Portugal, pela Bico de Pena. O romance de estreia nas bancas portuguesas não é excepção àquele orgulho algo missionário. Insiste na identidade e na memória, numa história que tem como protagonista um transexual contado na primeira pessoa.

Mendicutti, ex-crítico literário, é escritor há mais de 30 anos. Em Espanha, muitos críticos rendem-se à irreverência e ao humor dos seus romances. Mas recusa "o rótulo de escritor humorista". Com mais de dez obras publicadas, o escritor nascido em Sanlúcar de Barrameda, Cádis, em 1948, faz do humor uma marca do seu discurso literário mas rejeita que o estigma que reduz o humor " a um fenómeno literário de segunda categoria" comprometa o cunho de seriedade e de reflexão das suas histórias. "Há uma tendência para encarar o humor como um registo menor. Dizer que não se podem contar coisas sérias com sentido de humor é um absurdo."

Sentado num sofá do hotel Tivoli, em Lisboa, Eduardo Mendicutti dá poucas respostas sem cunho de ironia. "O sentido de humor é um pouco a minha linguagem", diz , a certa altura da entrevista. Confirma-se. Dá umas gargalhadas sonoras e ri tantas vezes que o riso parece ter-se tornado um tique ou um vício. Veste um fato inteiro que cai pesado num dia tórrido de final de Setembro. Tem um rosto bolachudo e comprido, olhos claros, muito abertos, mas é fácil que as atenções se afastem para a testa alongada, a perder de vista entre o cabelo grisalho miudamente escovado para trás.

Aos 24 anos, trocou Cádis, os setes irmãos e o colégio interno da infância por Madrid, cidade que nunca mais foi capaz de abandonar. Estudou Jornalismo mas nunca quis ser jornalista. "Era o curso que mais se parecia com o que já sabia que queria fazer durante a vida toda: escrever. Sempre pensei 'Eu, jornalista? Estou louco? Passar horas numa redacção? ´Não é vida para mim!'" Mas raramente abdica do método da investigação para dar corpo às personagens dos seus livros. Acredita que elas precisam de ser credíveis, apesar de serem ficcionadas.

Para escrever Não Tenho Culpa de Ter Nascido Tão Sexy, que chega a Portugal dez anos depois de ter sido publicado em Espanha, falou com transexuais e mergulhou no universo da literatura mística. O livro conta a história de Rebecca de Windsor, um transexual que um dia se confronta no espelho com as marcas do tempo. Para envelhecer com o mesmo esplendor com que em tempos foi uma diva do espectáculo, Rebecca de Windsor toma uma decisão: tornar-se santa. Cansada de uma vida rendida à imagem, inicia uma peregrinação em busca da iluminação espiritual por abadias e conventos de Espanha, onde devora exemplares de literatura mística como as obras de Santa Teresa ou de San Juan de La Cruz. "A tradição da literatura espanhola está muito ligada à literatura mística. Essa linguagem é difícil, arcaica. Precisava de ler algumas obras para adicionar a carga mística certa à linguagem da personagem, para não parecer falsificada."

O percurso de Rebecca de Windsor não é inspirado numa história biográfica. Eduardo Mendicutti interessou-se antes pelo "conflito interno", em compreender como uma mulher que se fez a si própria com a ajuda de hormonas, cirurgia e cosmética "é capaz de lidar com as cicatrizes do tempo" e qual o lugar da memória numa mulher nascida menino ou num homem nascido menina.

Usou a transexualidade não como pretexto secundário, mas como tema literário em si mesmo "que poderia explorar tanto nos aspectos argumentais e psicológicos como nos aspectos verbais e estilíticos".

A identidade é um tema em que cai quase sempre nos seus romances. Também na memória. Também na ânsia de perfeição. Também no confronto "entre o que alguém é e o que deseja ser".

Começou por escrever contos. O seu primeiro romance, escrito em 1973, nunca chegou a ser publicado. Era a censura de Franco a aprisionar a criação. Hoje recusa torná-lo público. "Era demasiado experimental", diz. Recebeu prémios como o Café Gijón, Sésamo e o Andaluzia de Crítica de 2002. Escreve sempre a partir de um título. Não Tenho Culpa de Ter Nascido Tão Sexy surgiu numa conversa espontânea com um amigo. Escritor e editores temiam que desse a ideia de um livro frívolo, superficial, e pensaram mudá-lo. No último momento, Mendicutti não foi capaz. "Era como estar a atraiçoar a obra, estar a viver como os 'gays' viveram durante anos - escondido." Dois dos seus romances foram adaptados ao cinema. Uma das adaptações - Los Novios Bulgaros, realizado por Eloy de la Iglesia - passou no Queer Lisboa em 2003. É colunista do El Mundo e da revista "gay" Zero e assina um comentário na rádio onde fala até sobre futebol, terreno em que se diz "uma espécie de 'hooligan' irremediável". Antes de assinar colunas e crónicas, dedicou-se à crítica literária. "Era um daqueles tipos insuportáveis que diziam mal de todos." Mendicutti não tenciona voltar, a menos que seja "num território estrangeiro onde ainda não seja odiado", afirma, rindo a meio das palavras. "As críticas literárias deviam ser como os delitos: deviam prescrever passados alguns anos."»

Ípsilon, Público, 26 de Outubro de 2007
Imprensa:

«Em diferido Eduardo Mendicutti

Os ínvios caminhos da santidade

Autor de mais de uma dezena de romances, Eduardo Mendicutti conversou com Os Meus Livros a propósito da edição em português de Não Tenho Culpa de Ter Nascido Tão Sexy, um livro que a superficialidade classificaria como "provocatório" e que se debate com questões tão universais como a identidade, a memória e o tempo. Sara Figueiredo Costa

O título pode levar a equívocos, iludindo sobre a profundidade do conteúdo. Eduardo Mendicutti tem uma obra extensa publicada em Espanha e está finalmente traduzido entre nós, com Não Tenho Culpa de Ter Nascido Tão Sexy (com a chancela da Bico de Pena). O livro é um road novel inesperado onde o caminho se faz muito mais de descobertas emocionais e da inevitável sombra do regresso do que dos avanços físicos entre paragens.

É, para além disso, uma obra que dialoga explicitamente com uma tradição literária que lhe é anterior, apresentando remissões frequentes para alguns dos monumentos da literatura em castelhano, como Dom Quixote, de Cervantes, ou os textos místicos de Santa Teresa de Ávila e S. João da Cruz. E sobre o diálogo com a tradição literária espanhola, o autor defende que "é muito interessante quebrar a tradição, mas é mais interessante conhecê-la, antes de qualquer outra coisa. E essa é, aliás, a única forma de a quebrar, de a desafiar. Acredito que uma forma de adaptar essa tradição que nos antecede é considerá-la noutros termos, com outros elementos. E isso até já o tinha experimentado no livro Los Novios Bulgaros, onde a personagem principal é totalmente quixotesca e onde a estrutura dos títulos é uma referência directa à obra de Cervantes".

O facto de a personagem central de Não Tenho Culpa de Ter Nascido Tão Sexy ser uma mulher que em tempos foi um homem poderá focar as atenções do romance no tema da transexualidade e na inevitável suspeita de provocação, já que Rebecca de Windsor - assim se chama aquele que um dia foi Jesus López Soler - decide procurar o caminho da santidade. Mas o que de facto interessou a Eduardo Mendicutti foi o tema da identidade e da sua construção: "Um dos impulsos que todos temos é o de querer enriquecer a nossa personalidade através da construção de uma identidade própria. A identidade não é algo estático e invariável, e se há um conflito com o que é, impõe-se a necessidade de tornar mais complexa a personalidade, conquistando algo novo". A escolha de uma personagem transexual revelou-se pertinente para esta reflexão em torno da identidade, na medida em que acrescenta de modo quase visceral um tópico intrinsecamente relacionado, o da memória. Como nos explicou o autor, "a memória é uma forma de nos inventarmos, na medida em que só recordamos o que queremos, ou do modo que queremos; mas apesar disso, as recordações que guardamos têm uma base real, e o que me interessou foi procurar perceber, no caso de um transexual, até onde chega o bisturi. Ao corpo físico, certamente, mas chegará à memória? Será capaz de apagar as recordações anteriores, verdadeiramente hostis e dolorosas?" No caso de Rebecca, as memórias permanecem, e um dos desafios do seu percurso pelos caminhos da santidade será o de aprender a conviver com elas. Mas Rebecca é uma personagem ficcional, e à ficção não cabe resolver unanimemente as dúvidas da realidade.

Espiritualidade e humor
O caminho de Rebecca de Windsor em busca da santidade estabelece um paralelismo propositado com as experiências místicas de Santa Teresa de Ávila, decritas em As Moradas. Também Rebecca, aspirando à condição de santa, passará por sete moradas, acompanhada por um jovem musculado com vagas conotações com São João da Cruz, e a sua aprendizagem acabará por passar mais pela aceitação da inevitável degradação do corpo que tanto lhe custara a conseguir do que pela assunção de uma forma de espiritualidade que não é a sua. Este contraste entre o carnal e o espiritual não é gratuito, como nos explicou o autor. "A ideia de que as emoções associadas à espiritualidade não têm nada a ver com a vertente corporal é absurda. Somos como somos e as nossas emoções surgem também do nosso corpo, da nossa carne, das nossas pulsões. Por outro lado, eu não fui o primeiro a relacionar as experiências místicas com as pulsões físicas e sexuais, e só alguém com dificuldade em aceitar o seu corpo poderia afastar ambas as coisas de modo definitivo".

Para tornar credível o paralelo com os místicos espanhóis e conseguir que o modo de falar de Rebecca remetesse para estes textos sem perder a coloquialidade que lhe é inerente, Mendicutti dedicou muito tempo à leitura de Santa Teresa de Ávila e São João da Cruz. "Naturalmente, li e reli todas as obras de que dispunha, de modo a habituar-me à sonoridade da linguagem e às suas características quase pictóricas. Claro que no momento de recriar essa linguagem e às suas características quase pictóricas. Claro que no momento de recriar essa linguagem, tive de abdicar de algumas coisas, para conseguir alguma fluidez com marcas de contemporaneidade. Foi exercício complexo, principalmente até encontrar o tom certo, mas o resultado deixou-me satisfeito", confessa.

Apesar da seriedade com que se aborda o percurso de Rebecca de Windsor, há momentos em que o humor assume um papel essencial na exposição de contradições sociais ou religiosas e nas deambulações monologais da personagem em reacção ao mundo que agora descobre. E o autor confirma a importância que lhe atribui e o potencial que lhe encontra: "na literatura, o humor é um instrumento extremamente rico e muito maleável; admite muitos registos e tons, permite, quer uma ironia quase subterrânea, quer um tom mais agressivo. Com o humor pode ser-se delicado, lírico, combativo, provocante, corrosivo, destrutivo, perverso, carinhoso... é um registo que admite todas as possibilidades e eu espero ter conseguido, nos meus livros, e neste romance em particular, tornar presentes dessas possibilidades".

O próximo livro
O próximo livro de Eduardo Mendicutti a ser editado em português, igualmente pela Bico de Pena, intitula-se Califórnia e passou por um processo de gestação que durou vários anos, levantando a suspeita de que talvez nunca viesse a escrever-se. Sobre isso, diz-nos o autor: "Califórnia era um romance que estava às voltas na minha cabeça há anos. Eu ia muito à Califórnia quando era mais novo e sempre me pareceu que tinha de utilizar as coisas que vi e as experiências que tive para contar o que vivi, porque a vida não é ficção e para a ficção é preciso saber modificar os elementos da realidade a que se recorre. Mas durante muito tempo, não consegui encontrar um sentido, uma história, para esse conhecimento e essas experiências. Até que encontrei esse sentido naquilo que veio a ser a segunda parte do romance e percebi todo o percurso do personagem." A acção de Califórnia acompanha os anos de juventude de Charlie naquele estado americano e o seu regresso, já adulto, a Espanha, mostrando as mudanças que se produzem no seu modo de pensar e agir e deixando implícita a certeza de que toda a gente pode mudar, "mesmo que seja para melhor", brinca o autor. Se no início do romance, Charlie se preocupa pouco com o que se passa em Espanha e com as mudanças que a querda de Franco poderá trazer, preferindo viver sem repressões a sua sexualidade e a sua liberdade, na segunda parte acompanhamos Carlos de regresso ao seu nome espanhol e em busca de uma cidadania que implica um assumir de responsabilidades que nunca lhe interessou. E esse é, afinal, "um regresso à Califórnia, agora percebida como um estado de espírito, um local onde esperamos por dias de sol mesmo que chova a potes, proque na Califórnia real chove muitíssimo!"

Apesar de Mendicutti ser um escritor com obra extensa e consolidada, dificilmente se salva da edituqeta de "autor de literatura gay". Contudo, o autor não se mostra disponível para atribuir demasiado peso à eterna moda das etiquetas. "Os escritores que escrevem livros onde a temática gay está presente costumam revoltar-se muito com essa etiqueta, porque isso implica que serão avaliados segundo um ponto de vista preconceituoso. E há duas possibilidades perante isso: aceitar o preconceito e recusar a definição (não a etiqueta, mas a própria definição!) de 'literatura gay', ou recusar o preconceito, recusando também a ideia inerente de que a temática gay é inferior a qualquer outra, ou vergonhosa, ou desinteressante. Quando falo de 'literatura gay', não estou a falar de um género, mas sim de uma temática, reflexo de uma certa 'cultura', com vivências específicas e com uma linguagem, não necessariamente verbal, própria. E isso não significa mais nem menos do que qualquer outra temática; convive com outros livros de outras temáticas e está ao alcance de qualquer leitor, independentemente das vivências e da sua orientação sexual".

Sem dar demasiada importância à etiqueta de que tanto se fala, mas igualmente sem recusar o seu conteúdo, Mendicutti nega qualquer intenção de compartimentar aquilo que escreve, facto que se confirma com a leitura deste Não Tenho Culpa de Ter Nascido Tão Sexy, tão específico na construção de uma personagem inesquecível como universal no questionamento do modo como a memória se constrói na identidade de cada ser humano.»

Os Meus Livros, Novembro de 2007
Crítica de imprensa:

Não Tenho Culpa de Ter Nascido Tão Sexy, Eduardo Mendicutti

«A estrada celestial

Rebecca de Windsor nasceu com corpo de homem, mas há muito que resolveu o problema, encontrando a forma física correcta para a sua identidade. Agora, é uma mulher que se sente envelhecer e, para o fazer da melhor maneira, decide que será santa. Este é o ponto de partida para um verdadeiro "road novel" que parodia a prosa mística do Século de Ouro Espanhol enquanto reflecte sobre a identidade e a memória, o modo como nos definem e as possibilidades que temos de moldá-las.
O caminho de Rebecca em direcção à santidade, procurando seguir os passos de Santa Teresa de Ávila, levá-la-á a enfrentar recordações dolorosas e a perceber que a recusa do que se é não permitirá nenhuma honestidade perante o que se quer ser; do mesmo modo que nunca poderia ser um rapaz, porque era uma rapariga que se sentia, nenhuma santidade a poderia tocar se para isso tivesse de recusar impulsos tão essenciais à humanidade como a protecção do próprio corpo e o respeito pelas suas necessidades. As sete moradas de Santa Teresa transformam-se, assim, em sete etapas de reconciliação e o discurso místico reveste-se de uma coloquialidade construída fielmente em relação à sua origem e aos seus objectivos. O humor pode ser uma arma contra a sisudez; aqui, é igualmente um instrumento para a reflexão mais profunda sobre o que é ser-se humano.»

Sara Figueiredo Costa, revista Os Meus Livros, Novembro de 2007

quinta-feira, 20 de setembro de 2007

Lançamento (actualizado):


Não Tenho Culpa de Ter Nascido Tão Sexy
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O escritor espanhol Eduardo Mendicutti esteve em Lisboa de 24 a 26 de Setembro para apresentar o seu primeiro livro publicado em Portugal, Não Tenho Culpa de Ter Nascido Tão Sexy. O lançamento decorreu no auditório do Instituto Cervantes, que se encheu para ouvir o escritor falar da sua obra e da sua carreira como autor. A sua visita contou ainda com uma ampla cobertura mediática, com várias entrevistas para a imprensa e para a rádio. A sua obra é amplamente louvada pela crítica e foi galardoada com prémios de destaque, tais como o Café Gijón, o Sésamo e o Premio Andalucía de la Crítica, e encontra-se traduzida em diversos idiomas.
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O evento:



Mendicutti (à direita) esclarece o público sobre o que o inspirou a escrever Não Tenho Culpa de Ter Nascido Tão Sexy.



O autor assina o seu livro, sob o olhar atento do editor da Bico de Pena, o Sr. Mário de Moura.
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O livro:

Sinopse:
Rebecca de Windsor, uma diva do mundo do espectáculo, descobre um dia, frente ao espelho, que o tempo começa a deixar marcas no seu fabuloso corpo. Rebecca sempre quis – e sempre conseguiu – ser a melhor em tudo, e não vai deixar que algo tão banal como a idade afecte o seu esplendor. Qual é a maneira mais elegante de uma diva envelhecer? É óbvio, conclui Rebecca: tornar-se santa. Mas não uma santa qualquer, uma dessas místicas de trazer por casa; não, uma santa de luxo, uma santa do melhor que há, a santa mais sexy de que há memória. Porque Rebecca de Windsor, nascida Jesús López Soler, passou por muitas contrariedades até conquistar o seu estatuto presente, não só de mulher, como de paradigma de beleza e elegância. Para o culminar, só mesmo a santidade. Rebecca parte então numa viagem mística por conventos e abadias de Espanha, na senda espiritual de Santa Teresa de Ávila.
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Críticas de imprensa:
«Romance inovador, iconoclasta, irreverente, ao mesmo tempo sensível, inteligente e carinhoso, Não Tenho Culpa de Ter Nascido Tão Sexy explora, entre o sorriso e a gargalhada, o laborioso processo de construção do ser humano, a possibilidade de se ser quem se quer realmente ser.»
La Vanguardia
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«Encontramos aqui um Mendicutti mais clássico – escrita correctíssima, agilidade narrativa, alegres coloquialismos – com o acréscimo de um misticismo que faz certas concessões a um pastiche da prosa espiritual do Século de Ouro sem perder a sua criatividade linguística.»
El Mundo
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«O talento literário de Mendicutti é indiscutível.»
El Cultural
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«A carreira literária de Eduardo Mendicutti está marcada por uma narrativa vivaz, ágil e muito fresca.»
El Mundo
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Sobre o Autor:
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Eduardo Mendicutti nasceu em Cádiz em 1948. Vive em Madrid desde 1972, onde se licenciou em jornalismo. Colabora regularmente com diversas publicações espanholas de renome. A sua obra foi galardoada com prémios de destaque, como o prémio Café Gijón, o prémio Sésamo e o Premio Andalucía de la Crítica, é amplamente louvada pela crítica e encontra-se traduzida para diversos idiomas. Dois dos seus romances foram adaptados com muito sucesso ao cinema pelos realizadores Jaime de Armiñán e Eloy de la Iglesia.
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Excerto:
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«A iluminação
Há seis meses, tomei uma firme decisão: ser santa. Vê-se, porém, que no santoral não há lugar para uma santa tão sexy.
Se calhar dá trabalho compreender que uma mulher tão sexy como eu se entregue à santidade, mas essa decisão não a tomei porque me desse o siroco, mas porque, numa noite escura, e encontrando-me enfrascada em trabalhos de manutenção com produtos da senhora dona Margaret Astor, tive uma iluminação.
[...]
Porque essa é outra: eu não ia ser uma santa corrente, eu ia ser uma santa de luxo. Uma dessas santas que têm desmaios, êxtases, feridas nas mãos como as chagas de Cristo, e que vivem sem viver em si. Eu não ia ser uma santa qualquer. O que acontece é que eu não posso, nem quero, ser uma santa de muito respeito em troca de deixar de ser quem sou.
Com o trabalhinho que me custou ser uma mulher inteira e verdadeira. Com a coragem que me fez falta. Sobretudo quando, há dez anos, tomei outra drástica decisão: operar-me, deixar na sala de operações os últimos estorvos de uma masculinidade errada e converter-me por fim, verdadeiramente e para sempre, na mulher mais sexy do mundo. E é isso que tem sido a minha vida, um rosário de determinações cortantes que apenas tinham a finalidade de me pôr cada vez mais a meu gosto, cada vez melhor, mais divina, foi sempre o que me disse toda a gente, filha, Rebecca, tu sempre com as tuas manias de perfeição. De modo que, depois desse currículo, não me ia contentar com um estatuto de santa de segunda categoria. Isso sem contar que, quando tive a iluminação, soube que a minha vocação era ser amada no Amado transformada. Que bonito.
[...]»

sexta-feira, 14 de setembro de 2007

Imprensa:

«Queer Lisboa arranca hoje à noite nas salas do São Jorge

O Festival de Cinema Gay e Lésbico de Lisboa [patrocinado pela Bico de Pena], que começa hoje e se prolonga até dia 22 no Cinema São Jorge, adopta este ano, na sua 11.ª edição, a designação Queer Lisboa, menos extensa, mas mais abrangente. A sua responsabilidade é clara, como bem o frisam as palavras do director João Ferreira: "Exibir importantes propostas cinematográficas, retrato e consequência das diversas realidades sociais das comunidades e indivíduos queer de todo o mundo, não acessíveis ao grande público." Este ano, o Queer Lisboa apresenta algumas novidades. Para além de prosseguir a sua aposta nas secções competitivas para Melhor Longa- -Metragem, Melhor Documentário e Melhor Curta-Metragem, o festival apresentará uma retrospectiva dedicada a um conjunto de filmes de expressão marcadamente queer que o realizador português Óscar Alves realizou entre 1975 e 1978, em "Panorama de uma Cinematografia Gay Portuguesa dos Anos 70". Outra das novidades é a secção Queer Pop, consagrada às expressões queer na música, e no âmbito da qual serão apresentados dois documentários, bem como três programas de telediscos.Paralelamente à programação central, destaque-se ainda o Panorama de Curtas-Metragens, secção dedicada a um conjunto de curtas de produção anterior a 2006. Haverá também uma sessão especial em que será exibido The Blossoming of Maximo Oliveros (2005), um dos maiores êxitos no circuito dos festivais queer internacionais de 2005 a 2006. No âmbito de outra das responsabilidades do Queer Lisboa, que é a de promover a reflexão sobre temas suscitados pelas narrativas e estéticas cinematográficas queer, o festival organizará três debates. Um sobre as personagens homossexuais na ficção televisiva portuguesa; outro intitulado "Uma Cinematografia Gay Portuguesa dos Anos 70", a propósito da retrospectiva do cinema de Óscar Alves; e ainda, motivado pelo filme de encerramento (The Picture of Dorian Gray, de Duncan Roy), o debate "Flores Verdes, ou a importância de se chamar Wilde", onde se falará da influência do escritor irlandês no cinema e na cultura pop. A cerimónia de abertura terá lugar hoje, pelas 21.00, com a apresentação das secções competitivas e do júri internacional, a que se seguirá a projecção do filme brasileiro A Casa de Alice, de Chico Teixeira. A actriz Cucha Carvalheiro é a presidente do júri para a Melhor Longa-Metragem. Já o júri para o Melhor Documentário tem como presidente a realizadora Ana Luísa Guimarães. Há ainda espaço para um mercado de livros e DVD, bem como uma série de festas.

Mais informações no site www.lisbonfilmfest.com, ou no blogue http://queerlisboa.blogspot.com.

Nuno Carvalho, Diário de Notícias, 14 de Setembro de 2007

quinta-feira, 6 de setembro de 2007

Imprensa:

«Diz-me com quem dormes e eu digo-te o que escreves?

É ainda pudica e pouco ousada. Mas dá vontade de começar a perguntar: o que é isso de literatura Lésbica, “Gay”, Bissexual e Transgénero e “Queer” em Portugal? Dá caução? Está a criar moda? Quem escreve – e é homossexual – responde: os autores Eduardo Pitta, Frederico Lourenço ou Pedro Gorski falam da sua obra. Miguel Vale de Almeida, antropólogo, lembra o seu “outing”. Uma autora, “hetero”, como Rosa Lobato Faria, antecipa ao Ípsilon o seu novo romance. Narrado por um homossexual.

Texto Isabel Coutinho
Ilustração João Fazenda


Numa palestra em Portugal, em 2001, o professor e crítico literário norte-americano Harold Bloom indignou-se contra os que, segundo ele, promovem “obras-primas de esquimós lésbicas”. Numa entrevista ao PÚBLICO foi ao pormenor: “Agora temos obras-primas de lésbicas esquimós. A minha mulher não gosta nada que eu diga isto. É uma coisa que vai chegar aqui. […] Vão dizer muito bem de poemas terríveis, apenas porque são escritos por lésbicos de Cabo Verde.”
Nessa entrevista, falou de autores esquecidos que estão a ser recuperados como autores “gay”. Contou uma história que lhe acontecera três anos antes, quando deu uma conferência na “muito politicamente correcta” Universidade da Califórnia.
“Estava a dar uma conferência, quando a sala literalmente explodiu. Queriam mesmo linchar-me, só porque eu, finalmente, disse a verdade. Virei-me para eles e disse-lhes: ‘Muitos de vocês, nesta sala, são professores de Literatura, mas não gostam realmente de literatura. Se comprarem uma mesa a um carpinteiro que por acaso é mexicano-americano, ou marxista, ou homossexual, e ele vos entrega uma mesa com as pernas a cair, vocês devolvem-na e exigem o vosso dinheiro. Mas estão mais do que dispostos a aceitar livros sem pernas. São completamente hipócritas. Há quotas [nos EUA] para mulheres, negros, mexicanos e homossexuais nas faculdades de Direito e Letras, mas não na de Medicina. Sabem porquê? Porque se vocês, os politicamente correctos, estiverem numa mesa de operações para ser operados ao cérebro e a médica que vai fazer a cirurgia for uma negra lésbica devastadoramente atraente – tento ser o mais ofensivo possível – que, explicam-vos, se qualificou com base na sua origem étnica e orientação sexual, todos vocês saltam imediatamente dali para fora’. Começou tudo a gritar comigo. ‘Racista! Fascista!’ E eu respondi-lhes, também aos berros: ‘Vocês são um nojo, são degradantes. Não têm qualquer argumento racional para opor ao que eu digo. São uns vigaristas. Todos vocês saltavam da mesa de operações’. Foi uma guerra. Mas haverá alguma ideia socialmente mais repugnante do que pretender que é mais benéfico para uma jovem cabo-verdiana que vem viver para Portugal ler obras dos seus compatriotas, por más que sejam, do que Eça ou Almeida Garrett? Outro dia fui falar de cinco dos meus poetas preferidos: Whitman, Pessoa, Lorca, Hart Crane e o maravilhoso Luís Cernuda. São todos homossexuais, mas que me interessa saber se eles preferem dormir com homens ou mulheres?”
Seis anos depois, o Ípsilon tenta confirmar a futurologia de Bloom – “é uma coisa que vai chegar aqui”. Há ficção “gay” e lésbica portuguesa? Promovem-se romances sem qualidade só porque são de autores “gay”? O que é isso de literatura LGBT (Lésbicas, “Gays”, Bissexuais e Transgénero) e “Queer”. É preciso ser homossexual para ter uma obra considerada “gay”, lésbica ou “queer”?
Autores como Eduardo Pitta, Frederico Lourenço ou Pedro Gorski publicaram nos últimos anos contos, romances, escrita autobiográfica e ensaio que se incluem na definição de “literatura gay”. Surgiram nas livrarias estantes dedicadas ao género, tendo sido criada uma editora, a Bico de Pena, destinada à literatura LGBT. E não estamos a falar de “nichos”. O “mainstream” não passa ao lado: em Setembro, a escritora Rosa Lobato Faria vai publicar “A Alma Trocada” (Asa), romance em que o narrador é um homossexual que “sai do armário”.
A criação da Bico de Pena (em 2005), que dedica uma colecção em exclusivo aos títulos LGBT, a Pena de Pavão, parece ser a ponta de um “iceberg” de mudança. Mas, na verdade, em todo o catálogo só foi editado um livro de contos de um autor português: “As Lágrimas de Bibi Zanussi e Outros Contos”, de Pedro Gorski (pseudónimo de um pintor).
Quando a editora foi lançada, o objectivo era, por um lado, “explorar um nicho de mercado com uma oferta relativamente escassa”; por outro, havia o desejo de ver publicados autores de destaque desconhecidos em Portugal.
“É certo que Edmund White, Gore Vidal, Allan Hollinghurst e Sarah Waters eram já publicados no nosso país. Mas foi com prazer que apresentámos Augusten Burroughs, Terenci Moix, Rita Mae Brown e Dennis Cooper”, diz Joana M. Neves, assistente editorial da Bico de Pena.
As vendas “têm sido positivas, embora lentas”. Não se esperava um “boom”. Apostou-se nos “long-sellers”. Inesperada, já agora, foi a reacção “conservadora” de alguns livreiros ao design das capas. “A capa do livro ‘As Lágrimas de Bibi Zanussi e Outros Contos’, uma foto de um negro com uma flor entre nádegas, chocou alguns livreiros, que se recusaram a ter ‘livros desses’ em exposição. Mas devemos também salientar que diversos livreiros declararam que já fazia falta dar esta visibilidade à literatura LGBT.”
Curiosamente, diz Joana, tem havido comentários de agentes, editores e até de críticos acerca da própria “categoria” de literatura gay. “O que nos leva, perguntam-nos, a publicar um livro na colecção de literatura ‘gay’? Para quê esta ‘classificação’?”
É uma discussão ampla, que não se aplica só à literatura. “A nossa postura tem sido a de que as categorias valem o que valem, mas tendo em conta o quanto o nosso mercado é ‘inundado’ de novidades, os livros têm de se destacar. Atribuir-lhes categorias é uma forma – simplista, mas eficaz – de lhes dar destaque. O que nos leva a publicar um livro na colecção Pena de Pavão é um critério igualmente simplista, se se quiser: ter qualidade literária e como temática uma relação homossexual (aquilo que evitamos a qualquer custo é tudo o que seja mal escrito ou minimamente panfletário)”.

[…]

Pedro Gorski, o autor de “As Lágrimas de Bibi Zanussi…”, optou por usar um pseudónimo quando publicou o livro porque “oferecia a falsa segurança de separar por algum tempo esta aventura” da sua “actividade profissional já decorrente”. Enviou o manuscrito para dez editoras, não só para aquelas que já haviam divulgado obras “gay”. “A minha ingenuidade começou a ser evidente à medida que os meses passavam sem resposta. Até que uma amiga me telefonou de Atenas, em inspiração sibilina, indicando-me a direcção correcta. Foi, assim, o manuscrito parar ao grupo editorial em que acabara de nascer a Bico de Pena, onde o género literário em que me inscrevia era uma aposta forte, junto de outros temas de sublinhada irreverência.”

[…]

Literatura Lésbica, onde estás?

Nem ousada, nem pudica: a ficção lésbica feita por autoras portuguesas e publicada em editoras com visibilidade, essa é que parece não existir. Há livros que têm personagens homossexuais e lésbicas, como “Os Sinais do Medo”, o primeiro romance de Ana Zanatti (2003, Dom Quixote) – o segundo, “Agradece o Beijo” (2005), tem personagens transexuais. Publicadas em editoras com menor visibilidade existem “Alice e o Abismo”, de Leonor Campos (Novo Livro, 2002) e “Descobre-me”, de Sandra Soares (Occidentalis, 2006). E ainda romances de Marta Tasmânia em edições de autor. Mas parece tudo diluído na nuvem da “literatura feminina” e da teia dos afectos.
“A escrita de autoras assumidamente lésbicas não existe em Portugal ou existe com qualidade muito pobre”, diz a activista “queer” Anabela Rocha. “A escrita de práticas assumidamente lésbicas por autoras mulheres vai existindo, mas em escritas também sem qualidade literária e que repetem narrativas identitárias ainda presas ao medo de ser homossexual.”
Acrescenta: “Na poesia portuguesa temos maior maturidade no erotismo lésbico e maior consciência feminista. Com tão poucas autoras a assumirem uma literatura feminista, pós-colonial; com tão pouca literatura feita por mulheres a reflectir sobre a diversidade da vida das mulheres em Portugal, não admira que não exista literatura lésbica.”
Como é que pode haver? “Não necessariamente apostando apenas no grande romance, mas apostando no romance popular, como muitas colecções em França e Espanha. Aquilo a que podemos chamar uma literatura urbana de modelos de vida segura, tranquila e feliz. Não é um retrato real de todas as vidas lésbicas; mas é uma esperança e uma boa leitura de praia”, conclui.
Em Setembro, uma mulher, Rosa Lobato Faria, 75 anos, publicará nas Edições ASA “A Alma Trocada”. Tem como personagem principal Teófilo, um homossexual. “Este livro não é diferente de nenhum outro; por acaso, a personagem é homossexual.”
Teófilo apareceu-lhe e ela deixou-o falar, tal como as outras personagens dos seus livros. “Teófilo é uma personagem como outra qualquer”. Agradou-lhe a ideia de um homossexual contar a sua história e sair do armário. Abordou o tema do ponto de vista social, não gosta de sociedades preconceituosas.
Não teve nenhuma intenção prévia. “Nunca me passaria pela cabeça escrever um livro para o inserir num género”. Diz que nem é de ir em modas. Mas a verdade é que desde que se soube que escreveu sobre um homossexual a solicitação dos “media” não tem parado. “Gostei daquele homem cheio de fragilidades porque não o deixaram crescer como ele devia ter crescido. É um homem que me é simpático.” Para escrever este livro não fez pesquisa porque a personagem é seu contemporâneo. Considera que o tema principal do romance é a “ideia da escolha das famílias do coração, em contraponto com as famílias de sangue”.
“Se isto puder ajudar alguém, já valeu a pena escrever o livro. Ajudar alguém a ser feliz na sua plenitude sexual. Mas não o fiz com essa intenção”, diz.
Ali Smith, a autora escocesa de “A Acidental”, romance premiado com o Whitbread Novel Award e publicado pela Bico de Pena, quando passou por Lisboa em 2006 disse ao Ípsilon que quando se trata de livros é importante não metê-los em guetos. Assumidamente lésbica, falava de categorizar livros em “gay e lésbicos”, de “auto-ajuda”, “thrillers”. Sabe a importância de ser escocesa, homossexual, ex-católica. Mas lembrava: “Eu não sou o meu livro, nunca serei o meu livro ou mesmo um livro. Sou uma pessoa e os livros têm que fazer o seu trabalho. Tem que ser livros e têm que ser donos da história que contam.”
Voltámos ao princípio, a Harold Bloom a falar dos seus escritores preferidos: “São todos homossexuais, mas que me interessa saber se eles preferem dormir com homens ou com mulheres?”»

Artigo completo no suplumento Ípsilon, Público, sexta-feira 24 de Agosto de 2007

quarta-feira, 5 de setembro de 2007

Como deixar um comentário!

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terça-feira, 21 de agosto de 2007

Imprensa:


O post que a seguir apresentamos é o excerto de um artigo escrito por Arnon Grunberg, autor de O Messias dos Judeus, publicado este ano pela Bico de Pena, para o Courrier Internacional, no qual relata com incrível pormenor a sua visita à base americana de Guantanamo, onde se encontram centenas de detidos, na guerra contra o terrorismo. Grunberg juntou-se a um grupo de jornalistas e fez a visita guiada pela base, desde as celas à cozinha, apresentando-nos neste artigo uma perspectiva profunda e detalhada, temperada com um humor apurado e um sentido crítico subtil, de como vivem os detidos e de como é gerido o campo.

«Viagem a "Guantanamo Bay Detention Camp"


No mês de Janeiro, o romancista holandês Arnon Grunberg visitou, na qualidade de jornalista, a base americana de Guantánamo, onde centenas de "combatentes inimigos" estão detidos, em segredo, desde 2002. Conta a visita muito guiada que fez, na companhia de outros correspondentes de imprensa.

Por Arnon Grunberg


Um dos destinos de férias actualmente mais procurados é, sem dúvida alguma, Guantánamo Bay - "Gitmo", para os iniciados. Não estou a falar dos cerca de 395 prisioneiros que ali estão detidos como "combatentes inimigos". Estou a falar do fluxo contínuo de altos dignitários, advogados, representantes da Cruz Vermelha e jornalistas que visitam os "combatentes inimigos". No verdadeiro sentido da palavra, a designação de "visita" só se aplica à Cruz Vermelha, embora esta não esteja autorizada a divulgar o que observou, e aos advogados, embora estes nem sempre tenham a possibilidade de falar com os seus clientes. Os altos dignitários e os jornalistas podem, quanto muito, espreitar por entre as grades.
A viagem para este tão procurado destino começa por citações bíblicas. Muito antes de poder pôr os pés em Gitmo, o jornalista tem de trocar uma série de mensagens electrónicas com a "Joint Task Force Guantanamo" (JTFGTMO) instalada em Guantánamo para guardar, interrogar e manter vivos os "combatentes inimigos".
As mensagens de correio electrónico da JTFGTMO apresentam, no fim, excertos da Bíblia. Pequena antologia dessas citações: "E qual de vós poderá, com todos os seus cuidados, acrescentar um côvado à sua estatura?" (Mateus, VI, 27), "Aliás sabemos que Deus faz concorrer todas as coisas para o bem daqueles que O amam, daqueles que são eleitos segundo os Seus desígnios" (Epístola de São Paulo aos Romanos, VIII, 28).
Mas, na maior parte dos casos, a JTF conclui as suas mensagens com o aforismo "Mata o pecado, senão o pecado matar-te-á". Ao princípio, pensei que este aforismo era uma criação original da JTFGTMO. Mas depois descobri que era da lavra do teólogo John Owen.
É de crer que eu tinha morto o pecado que havia em mim porque, no fim de diversos procedimentos, informaram-me de que era bem-vindo a Gitmo - com a condição de esperar. Dezembro estava esgotado. Um representante dos "media" não entra em Gitmo durante o fim-de-semana. Lá, os fins-de-semana são "desmediatizados". O jornalista chega na segunda-feira e parte na quinta ou, excepcionalmente, na sexta. A partir do aeroporto internacional de Fort Lauderdale-Hollywood, na Florida, pode escolher seguir para Gitmo num voo da Air Sunshine ou da Lynx Air International.
A Air Sunshine estava fora de questão. Há limites para a ironia.
Na segunda-feira passada, à custa de algumas investigações, encontrei, num recanto do aeroporto, o balcão da Lynx Air. Fiz fila com um grupo de trabalhadores imigrantes filipinos, que trabalham em Gitmo em grande número.
Segundo um advogado que encontrei em Gitmo, os trabalhadores imigrantes ganham ali menos de dois dólares por hora [1,46 euros], mas a JTFGTMO ainda não confirmou essa informação. Os filipinos que estavam à espera à minha frente não pareciam fazer a mínima ideia do sítio para onde iam mas estavam na posse da preciosa "area clearance". Quem quiser embarcar para Gitmo tem, antes de mais, de apresentar a sua "area clearance", um documento que dá ao seu detentor autorização para entrar no local da base da Marinha. Para se ter acesso aos campos de Gitmo, é exigida mais uma "clearance" específica.
Depois de examinar o papel, a Lynx Air pesa os passageiros. (Uma colega que queria partir um dia antes tinha perguntado se ainda havia lugar no avião e responderam-lhe: "Isso depende do seu peso.") Depois de me ter pesado, o empregado da Lynx Air disse-me: "Volte às 3 horas." Às 3 horas, apresentei-me novamente no balcão, ao mesmo tempo que os trabalhadores imigrantes filipinos, alguns homens que pareciam ser advogados ou colaboradores de organizações humanitárias, ou talvez mesmo diplomatas, e dois colegas. Tal como os turistas, os representantes dos órgãos de informação reconhecem-se ao primeiro olhar.
Mantive-me afastado.
De repente, o empregado da Lynx Air exclama: "Sigam-me."
Os trabalhadores imigrantes, os homens misteriosos e os jornalistas seguem-no docilmente. O empregado abre uma porta e ficamos diante de um avião minúsculo. Embarcamos com rapidez, sem qualquer controlo de segurança. Quem tem uma "area clearance", está OK. Dentro do pequeno avião, um Fairchild MetroIII, é impossível estar de pé e não há casas de banho nem hospedeiras. Durante o voo, temos uma vista panorâmica sobre o "cockpit", o que é instrutivo.
O voo dura mais do que o necessário porque as companhias aéreas americanas não estão autorizadas a atravessar o espaço aéreo cubano. Isso só acontece no momento da aterragem em Gitmo. Quanto a este ponto, Cuba foi mais complacente.
Mesmo antes de aterrar, somos apanhados por uma tempestade tropical. Dentro de um hangar, aguarda-nos um homem vestido à civil, que controla mais uma vez a minha "area clearance", ao mesmo tempo que um soldado lança uma olhadela rápida à mala do meu computador. E, pronto, eis-me cá fora, a apanhar chuva. O Exército americano devia ter vindo buscar-me, mas não há exército à vista.
"Para onde vai?", pergunta-me um dos meus companheiros de voo.
"Não faço ideia", respondo.
"Então, não posso dar-lhe boleia."

Passado pouco tempo, vêm juntar-se a mim dois colegas, Michelle e Pete, que trabalham para "The Toronto Star", ele como fotógrafo e ela como repórter.
"É a primeira vez que vem a Gitmo?", pergunta Michelle.
Digo que sim.
"Nós já viemos uma vez", diz Pete.

Só estou ali há cinco minutos e já fui desmascarado: sou um caloiro de Gitmo. E não consigo deixar de pensar no aforismo da JTFGTMO: "Mata o pecado, senão o pecado matar-te-á."
É impossível emitir uma opinião sobre os campos de Guantánamo Bay sem responder a esta pergunta: estaremos em plena guerra mundial contra o terrorismo ("Global War on Terrorism", GWOT)? Se estivermos de facto perante um fenómeno como a GWOT, se há boas razões para isso, então é preciso haver um centro de detenção onde os "combatentes inimigos" possam estar detidos até nova ordem. Mas, se não houver GWOT - ou, pelo menos, se nós não tomarmos parte nela -, a questão que se põe é esta: quem é o nosso inimigo? Para que servem estes detectores de metais?
[...]

Celas para deficientes


Depois do almoço, levam-nos ao Campo 5. Este campo de detenção não tem nada de provisório. Foi construído para ainda cá estar daqui a 60 anos. Depois de termos franqueado algumas barreiras, o comandante do Campo 5 conduz-nos numa visita guiada. Mostra-nos uma cela onde os detidos são interrogados. Há um pequeno tapete. O detido está sentado no cadeirão e há um mecanismo fixado ao chão, que permite acorrentar a perna no detido.
"Há celas especiais para deficientes", diz o comandante. Não sabe quantos detidos deficientes existem. Diante de uma das celas, está uma muleta de madeira.
Aqui, todos os guardas usam máscaras sobre o rosto, para se protegerem do já referido "cocktail" ( este "cocktail" é um composto de excrementos, urina, sangue e esperma) com que são borrifados de vez em quando. Mostram-nos dois detidos que foram levados para o ar livre. Vemo-los através de um vidro. Eles não nos vêem. Um deles é um homem com barba, que está sentado no chão e fala, gesticulando, com outro detido, este último de ar imberbe tem qualquer coisa de asiático, de chinês, na fisionomia. Os dois estão descalços. De repente, parecem ficar com medo. "Eles não nos vêem, mas vêem o 'flash' da máquina fotográfica", diz o comandante.
Em seguida, é a vez do Campo 6. Novinho em folha, é o último grito em matéria de prisões. Aqui, vemos os detidos nas suas celas. De três em três segundos, um vigilante passa diante das celas para se ver o interior. A porta é uma grade. Os detidos não se vêem uns aos outros, mas ouvem-se. Estão sempre a falar uns com os outros ou, pelo menos, fazem barulho. O campo 6 parece uma enorme gaiola de pássaros.
O comandante diz-nos: "As luzes são apagadas às 22 horas e voltam a ser acesas às 5 horas. Quando os detidos não querem tomar duche ou apanhar ar, respeitamos a sua vontade." Aponta para uma cela vazia e acrescenta: "Uma cela como esta é maior do que a minha sala de estar."
Este primeiro dia nos campos de detenção de Gitmo termina com uma visita às cozinhas. Sam, uma mulher já madura, simpática, de tipo asiático, é a responsável pela alimentação.
"Os detidos recebem cinco mil calorias por dia", informa-nos Sam.
"Não será demais?", pergunta o camarada de "The Daily Telegraph".

Sam responde: "Eles têm fome. Não fazem nada durante todo o dia a não ser comer e ficar sentados. Comer e ficar sentados."
Antes de nos deixarem entrar verdadeiramente nas cozinhas, distribuem uns chapelinhos de papel que desencadeiam o riso dos jornalistas. Sam diz: "Eles comem a mesma coisa que nós." Frase que irá repetir como um mantra. Passamos pelas despensas. "Gostam muito de alho", diz Sam, mostrando-nos as reservas de alho.
[...]
Todos os anos, o "Adminstrative Review Board" decide sobre a legitimidade da detenção do prisioneiro. A saúde mental deste não é tida em conta nessa decisão. "O que está em causa é aquilo que ele fez fora do campo", diz Haben. O detido só pode tomar conhecimento das acusações que lhe são feitas se estas não tiverem sido classificadas como "segredo de defesa".
"Uma informação obtida por meio da tortura pode ser utilizada contra o detido?", pergunto.
"Aqui, não há tortura", responde o capitão Haben. "Isso faz parte dos mitos alimentados no exterior. Tal como o mito segundo o qual haveria aqui detidos dos quais nunca mais ninguém recebera o menor sinal de vida.
Muitas das coisas que, em Gitmo, suscitam horror fazer parte do tratamento padrão nas prisões de alta segurança. Em alguns aspectos, a situação em Gitmo até é melhor. Em comparação com uma prisão de alta segurança que visitei recentemente na Polónia, a cozinha de Gitmo pareceu-me mais higiénica e a alimentação mais apetitosa. Em Gitmo, o risco de violação por outros detidos é fraco, coisa que infelizmente não se pode dizer de muitas outras prisões americanas e europeias.
É verdade que os detidos de Gitmo são mantidos na prisão sem julgamento. Inúmeros prisioneiros, noutras partes do mundo, e não apenas aqueles que são suspeitos de terrorismo, foram alvo de julgamentos que não merecem esse nome.
Não fui autorizado a falar com os detidos, embora a Convenção de Genebra não o proíba expressamente, como os americanos quiseram fazer crer, no começo da minha visita.
Guantánamo não pode ser comparada com uma institução penitenciária holandesa, mas nada do que se passa em Guantánamo - e isso parece por vezes ser esquecido - acontece em qualquer outro sítio. Aquilo que Gitmo tem de verdadeiramente único e a abundância de visitas de jornalistas.
A questão que subsiste é saber como, e por quanto tempo, vamos manter encarceradas pessoas que, na nossa opinião, já não têm lugar na nossa sociedade. A questão que subsiste é saber se a vingança é permitida pelo direito penal.
Enquanto este assunto não for debatido, Guantánamo continuará a ser o enésimo exemplo de indignação selectiva. Não: "indignação selectiva" é uma expressão do passado. Indiferença selectiva.»

Artigo integral na edição de sexta-feita, 3 de Agosto de 2007, do Courrier Internacional

Site do autor: http://www.arnongrunberg.com/

quinta-feira, 26 de julho de 2007

Imprensa:
«Dez novos contos entre velhas montanhas

Contos. Histórias de solidão e de luta pela mesma autora de "Brokeback Mountain"

O conto de Annie Proulx que o realizador Ang Lee recentemente levou ao cinema em O Segredo de Brokeback Mountain revelava, além de uma dramática história de amor, um contexto de frio, desconforto e silêncio próprio de algumas vidas solitárias lançadas para a montanha. Terreno Vedado - Histórias do Wyoming é um conjunto de contos-irmãos desse outro que, entretanto, a Bico de Pena já publicou em livro.
De comum entre estas histórias corre um transpirar de vidas difíceis, a proximidade de um solo rude, marcos de tragédia, que a escrita de Annie Proulx, em tempos jornalista, transforma em assombrosas narrativas.
Estes contos são fruto de um encantamento da autora pelo Estado para onde se mudou em 1994. A epígrafe "a realidade nunca lhes serviu para grande coisa, por estas bandas", atribuída a um velho cowboy do Wyoming sugere que, por estas palavras, o fantástico e o improvável correm de mãos dadas com cenários crus, de rocha à mostra, e pelas gentes que as pisam. Todavia, esse "real" não deixa de morar nunca em cada história que se conta, habitando como paisagem inevitável em relatos de vidas comuns.
O rápido curriculum vitae de Leeland Lee, nascido em 1947, que tropeça de mau em pior negócio, falência aqui, despedimento ali. A odisseia dos nove filhos de Isaac Dunmire, que "recebiam cordas no Natal, um aperto de mão em cada aniversário e que se lixasse o bolo". Ou um genial golpe chico-esperto de vaqueiros no frio Inverno de 1886... Em todas estas histórias (dez ao todo aqui reunidas), a natureza é força maior que verga o homem. Entre relatos projectados no século XIX, outros contados na idade dos telemóveis e dos computadores, o mesmo Wyoming é a paisagem que, antes de tudo mais, molda as vidas de ficção que Annie Proulx ali coloca. Um Oeste que mesmo quando novo ainda ostenta marcas de outros tempos, destapando casos de isolamento, de perigos inesperados, tramas e vinganças, palco para personagens com vidas tão impiedosas quando a paisagem que as serve.»
Nuno Galopim, Diário de Notícias, Sábado, 14 de Julho de 2007

sexta-feira, 20 de julho de 2007

Pedro Gorski na Feira da Diversidade

No âmbito do Ano Europeu de Igualdades de Oportunidades para Todos, teve lugar no passado fim-de-semana, no Terreiro do Paço, em Lisboa, a Festa da Diversidade e de Igualdade de Oportunidades. Estiveram presentes mais de 90 ONGs, divulgando o seu trabalho junto do público presente – entre elas, a Opus Gay, que convidou o escritor Pedro Gorski a fazer uma pequena sessão de autógrafos com o seu livro As Lágrimas de Bibi Zanussi. Ao som da música cubana e árabe que vinha do palco, onde se apresentavam diversos artistas, Pedro Gorski conheceu alguns dos seus leitores e conversou com pessoas que por ali passavam. Uma coincidência engraçada: dois rapazes polacos reconheceram o seu nome e perguntaram de que parte da Polónia era a sua família. É que Pedro Gorski é o pseudónimo de Bebé Mascarenhas de Menezes. Nascido em 1966, Bebé Mascarenhas de Menezes foi o último de 15 irmãos. Aos 4 anos tem a honra de ser escolhido para acólito favorito do pároco da sua freguesia. Aos 12 anos, o padrinho assumiu a sua educação e levou-o para o Canadá, onde, mais tarde, estudou Artes Plásticas e Design. Regressou a Portugal aos 22 anos, onde, devido à sua extrema beleza física, prosperou como modelo e acompanhante. Em 1996 inicia a busca da sua vocação íntima, recuperando a sua formação artística.
O seu livro, As Lágrimas de Bibi Zanussi e Outros Contos (Bico de Pena, colecção «Pena de Pavão», 2006) apresenta uma visão franca do universo gay, com uma sensibilidade apurada e uma estética apelativa. Reúnem-se aqui nove contos homoeróticos nos mais variados géneros, da ficção histórica à sátira social, do erótico ao fantástico, povoados por personagens inesquecivelmente verosímeis e únicas.Um livro surpreendente e corajoso, tão divertido quanto comovente, que apresenta ao público português uma voz inovadora e mordaz nas letras lusas!

quarta-feira, 18 de julho de 2007

Setembro: Eduardo Mendicutti em Portugal!

Eduardo Mendicutti estará em Portugal, de 24 a 26 de Setembro, para promover o seu novo livro Não Tenho Culpa de Ter Nascido Tão Sexy (a sair nesse mesmo mês), uma obra que tem tanto de inovador como de irreverente. O lançamento será feito no Instituto Cervantes, em Lisboa, no dia 24 de Setembro, pelas 18h30, com a apresentação do livro, e a realização de uma sessão de autógrafos. Não Tenho Culpa de Ter Nascido Tão Sexy é o primeiro livro de Mendicutti a ser editado pela Bico de Pena. A sua obra é amplamente louvada pela crítica e foi galardoada com prémios de destaque, tais como o Café Gijón, o Sésamo e o Premio Andalucía de la Crítica, e encontra-se traduzida em diversos idiomas.

Sinopse:

Rebecca de Windsor, uma diva do mundo do espectáculo, descobre um dia, frente ao espelho, que o tempo começa a deixar marcas no seu fabuloso corpo. Rebecca sempre quis – e sempre conseguiu – ser a melhor em tudo, e não vai deixar que algo tão banal como a idade afecte o seu esplendor. Qual é a maneira mais elegante de uma diva envelhecer? É óbvio, conclui Rebecca: tornar-se santa. Mas não uma santa qualquer, uma dessas místicas de trazer por casa; não, uma santa de luxo, uma santa do melhor que há, a santa mais sexy de que há memória. Porque Rebecca de Windsor, nascida Jesús López Soler, passou por muitas contrariedades até conquistar o seu estatuto presente, não só de mulher, como de paradigma de beleza e elegância. Para o culminar, só mesmo a santidade. Rebecca parte então numa viagem mística por conventos e abadias de Espanha, na senda espiritual de Santa Teresa de Ávila.

Críticas de imprensa:

«Romance inovador, iconoclasta, irreverente, ao mesmo tempo sensível, inteligente e carinhoso, Não Tenho Culpa de Ter Nascido Tão Sexy explora, entre o sorriso e a gargalhada, o laborioso processo de construção do ser humano, a possibilidade de se ser quem se quer realmente ser.»
La Vanguardia

«Encontramos aqui um Mendicutti mais clássico – escrita correctíssima, agilidade narrativa, alegres coloquialismos – com o acréscimo de um misticismo que faz certas concessões a um pastiche da prosa espiritual do Século de Ouro sem perder a sua criatividade linguística.»
El Mundo

«O talento literário de Mendicutti é indiscutível.»
El Cultural

«A carreira literária de Eduardo Mendicutti está marcada por uma narrativa vivaz, ágil e muito fresca.»
El Mundo

Sobre o Autor:

Eduardo Mendicutti nasceu em Cádiz em 1948. Vive em Madrid desde 1972, onde se licenciou em jornalismo. Colabora regularmente com diversas publicações espanholas de renome. A sua obra foi galardoada com prémios de destaque, como o prémio Café Gijón, o prémio Sésamo e o Premio Andalucía de la Crítica, é amplamente louvada pela crítica e encontra-se traduzida para diversos idiomas. Dois dos seus romances foram adaptados com muito sucesso ao cinema pelos realizadores Jaime de Armiñán e Eloy de la Iglesia.


O que haverá mais a saber sobre... sexo?

Temos uma colecção só para si que lhe irá desvendar esse mistério. Na senda da sábia ave de Atena, escrevemos com a Pena de Mocho livros de inestimável utilidade. O leitor encontra nesta colecção manuais, dicionários e outras obras práticas ligadas sobretudo ao mundo erótico. Livros de «know-how» sobre a complexa arte de amar, pontuados sempre de humor e perspicácia.

Acha que sabe tudo sobre sexo? Acha que já sabe tudo o que pode fazer numa cama (ou numa mesa de cozinha, num carro, ao ar livre, etc.) com outra(s) pessoa(s)? Tem a certeza absoluta? Se tiver, muitos parabéns! Se não tiver… não se preocupe! Com estes pequenos livros, Saiba Tudo Sobre os mais diversos aspectos, práticas, taras, fetiches e gostos relacionados com a sexualidade humana. Porque o saber não ocupa lugar… e pode dar muito prazer!






Títulos disponíveis nesta colecção:


STS... O Ponto G

STS... O Sexo e os Astros

STS... Jogos Eróticos

STS... Fazer Amor Em Todo o Lado Menos na Cama

STS... Felação

STS... Sadomasoquismo