segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Imprensa:

«Eduardo Mendicutti debruçado sobre a identidade

Não Tenho Culpa de Ter Nascido Tão Sexy é o primeiro livro de Eduardo Mendicutti a ser publicado em Portugal. Por trás do título "light", esconde-se "uma história sobre a identidade e a memória", na voz de um transexual. O Ípsilon foi descobrir o escritor. Sílvia Caneco

Eduardo Mendicutti tem uma vaidade. Tem uma vaidade e orgulha-se dela: "Dei aos homossexuais voz própria na literatura." As personagens dos seus livros são quase sempre de territórios à margem. São homossexuais, travestis, transexuais. Mas não são contadas, contam-se a si mesmas. Eduardo Mendicutti tem essa vaidade e não teme ostentá-la. "Ainda existe muita ignorância sobre como são essas pessoas. Há muitas etiquetas. Contadas pela voz dos outros, parece que são sempre iguais. Mexem-se assim, falam desta maneira. É preciso conhecer para poder dar uma imagem verdadeira", afirmou o escritor, na passagem por Lisboa para o lançamento de Não Tenho Culpa de Ter Nascido Tão Sexy, o primeiro exemplar da sua obra a ser publicado em Portugal, pela Bico de Pena. O romance de estreia nas bancas portuguesas não é excepção àquele orgulho algo missionário. Insiste na identidade e na memória, numa história que tem como protagonista um transexual contado na primeira pessoa.

Mendicutti, ex-crítico literário, é escritor há mais de 30 anos. Em Espanha, muitos críticos rendem-se à irreverência e ao humor dos seus romances. Mas recusa "o rótulo de escritor humorista". Com mais de dez obras publicadas, o escritor nascido em Sanlúcar de Barrameda, Cádis, em 1948, faz do humor uma marca do seu discurso literário mas rejeita que o estigma que reduz o humor " a um fenómeno literário de segunda categoria" comprometa o cunho de seriedade e de reflexão das suas histórias. "Há uma tendência para encarar o humor como um registo menor. Dizer que não se podem contar coisas sérias com sentido de humor é um absurdo."

Sentado num sofá do hotel Tivoli, em Lisboa, Eduardo Mendicutti dá poucas respostas sem cunho de ironia. "O sentido de humor é um pouco a minha linguagem", diz , a certa altura da entrevista. Confirma-se. Dá umas gargalhadas sonoras e ri tantas vezes que o riso parece ter-se tornado um tique ou um vício. Veste um fato inteiro que cai pesado num dia tórrido de final de Setembro. Tem um rosto bolachudo e comprido, olhos claros, muito abertos, mas é fácil que as atenções se afastem para a testa alongada, a perder de vista entre o cabelo grisalho miudamente escovado para trás.

Aos 24 anos, trocou Cádis, os setes irmãos e o colégio interno da infância por Madrid, cidade que nunca mais foi capaz de abandonar. Estudou Jornalismo mas nunca quis ser jornalista. "Era o curso que mais se parecia com o que já sabia que queria fazer durante a vida toda: escrever. Sempre pensei 'Eu, jornalista? Estou louco? Passar horas numa redacção? ´Não é vida para mim!'" Mas raramente abdica do método da investigação para dar corpo às personagens dos seus livros. Acredita que elas precisam de ser credíveis, apesar de serem ficcionadas.

Para escrever Não Tenho Culpa de Ter Nascido Tão Sexy, que chega a Portugal dez anos depois de ter sido publicado em Espanha, falou com transexuais e mergulhou no universo da literatura mística. O livro conta a história de Rebecca de Windsor, um transexual que um dia se confronta no espelho com as marcas do tempo. Para envelhecer com o mesmo esplendor com que em tempos foi uma diva do espectáculo, Rebecca de Windsor toma uma decisão: tornar-se santa. Cansada de uma vida rendida à imagem, inicia uma peregrinação em busca da iluminação espiritual por abadias e conventos de Espanha, onde devora exemplares de literatura mística como as obras de Santa Teresa ou de San Juan de La Cruz. "A tradição da literatura espanhola está muito ligada à literatura mística. Essa linguagem é difícil, arcaica. Precisava de ler algumas obras para adicionar a carga mística certa à linguagem da personagem, para não parecer falsificada."

O percurso de Rebecca de Windsor não é inspirado numa história biográfica. Eduardo Mendicutti interessou-se antes pelo "conflito interno", em compreender como uma mulher que se fez a si própria com a ajuda de hormonas, cirurgia e cosmética "é capaz de lidar com as cicatrizes do tempo" e qual o lugar da memória numa mulher nascida menino ou num homem nascido menina.

Usou a transexualidade não como pretexto secundário, mas como tema literário em si mesmo "que poderia explorar tanto nos aspectos argumentais e psicológicos como nos aspectos verbais e estilíticos".

A identidade é um tema em que cai quase sempre nos seus romances. Também na memória. Também na ânsia de perfeição. Também no confronto "entre o que alguém é e o que deseja ser".

Começou por escrever contos. O seu primeiro romance, escrito em 1973, nunca chegou a ser publicado. Era a censura de Franco a aprisionar a criação. Hoje recusa torná-lo público. "Era demasiado experimental", diz. Recebeu prémios como o Café Gijón, Sésamo e o Andaluzia de Crítica de 2002. Escreve sempre a partir de um título. Não Tenho Culpa de Ter Nascido Tão Sexy surgiu numa conversa espontânea com um amigo. Escritor e editores temiam que desse a ideia de um livro frívolo, superficial, e pensaram mudá-lo. No último momento, Mendicutti não foi capaz. "Era como estar a atraiçoar a obra, estar a viver como os 'gays' viveram durante anos - escondido." Dois dos seus romances foram adaptados ao cinema. Uma das adaptações - Los Novios Bulgaros, realizado por Eloy de la Iglesia - passou no Queer Lisboa em 2003. É colunista do El Mundo e da revista "gay" Zero e assina um comentário na rádio onde fala até sobre futebol, terreno em que se diz "uma espécie de 'hooligan' irremediável". Antes de assinar colunas e crónicas, dedicou-se à crítica literária. "Era um daqueles tipos insuportáveis que diziam mal de todos." Mendicutti não tenciona voltar, a menos que seja "num território estrangeiro onde ainda não seja odiado", afirma, rindo a meio das palavras. "As críticas literárias deviam ser como os delitos: deviam prescrever passados alguns anos."»

Ípsilon, Público, 26 de Outubro de 2007

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