quinta-feira, 6 de setembro de 2007

Imprensa:

«Diz-me com quem dormes e eu digo-te o que escreves?

É ainda pudica e pouco ousada. Mas dá vontade de começar a perguntar: o que é isso de literatura Lésbica, “Gay”, Bissexual e Transgénero e “Queer” em Portugal? Dá caução? Está a criar moda? Quem escreve – e é homossexual – responde: os autores Eduardo Pitta, Frederico Lourenço ou Pedro Gorski falam da sua obra. Miguel Vale de Almeida, antropólogo, lembra o seu “outing”. Uma autora, “hetero”, como Rosa Lobato Faria, antecipa ao Ípsilon o seu novo romance. Narrado por um homossexual.

Texto Isabel Coutinho
Ilustração João Fazenda


Numa palestra em Portugal, em 2001, o professor e crítico literário norte-americano Harold Bloom indignou-se contra os que, segundo ele, promovem “obras-primas de esquimós lésbicas”. Numa entrevista ao PÚBLICO foi ao pormenor: “Agora temos obras-primas de lésbicas esquimós. A minha mulher não gosta nada que eu diga isto. É uma coisa que vai chegar aqui. […] Vão dizer muito bem de poemas terríveis, apenas porque são escritos por lésbicos de Cabo Verde.”
Nessa entrevista, falou de autores esquecidos que estão a ser recuperados como autores “gay”. Contou uma história que lhe acontecera três anos antes, quando deu uma conferência na “muito politicamente correcta” Universidade da Califórnia.
“Estava a dar uma conferência, quando a sala literalmente explodiu. Queriam mesmo linchar-me, só porque eu, finalmente, disse a verdade. Virei-me para eles e disse-lhes: ‘Muitos de vocês, nesta sala, são professores de Literatura, mas não gostam realmente de literatura. Se comprarem uma mesa a um carpinteiro que por acaso é mexicano-americano, ou marxista, ou homossexual, e ele vos entrega uma mesa com as pernas a cair, vocês devolvem-na e exigem o vosso dinheiro. Mas estão mais do que dispostos a aceitar livros sem pernas. São completamente hipócritas. Há quotas [nos EUA] para mulheres, negros, mexicanos e homossexuais nas faculdades de Direito e Letras, mas não na de Medicina. Sabem porquê? Porque se vocês, os politicamente correctos, estiverem numa mesa de operações para ser operados ao cérebro e a médica que vai fazer a cirurgia for uma negra lésbica devastadoramente atraente – tento ser o mais ofensivo possível – que, explicam-vos, se qualificou com base na sua origem étnica e orientação sexual, todos vocês saltam imediatamente dali para fora’. Começou tudo a gritar comigo. ‘Racista! Fascista!’ E eu respondi-lhes, também aos berros: ‘Vocês são um nojo, são degradantes. Não têm qualquer argumento racional para opor ao que eu digo. São uns vigaristas. Todos vocês saltavam da mesa de operações’. Foi uma guerra. Mas haverá alguma ideia socialmente mais repugnante do que pretender que é mais benéfico para uma jovem cabo-verdiana que vem viver para Portugal ler obras dos seus compatriotas, por más que sejam, do que Eça ou Almeida Garrett? Outro dia fui falar de cinco dos meus poetas preferidos: Whitman, Pessoa, Lorca, Hart Crane e o maravilhoso Luís Cernuda. São todos homossexuais, mas que me interessa saber se eles preferem dormir com homens ou mulheres?”
Seis anos depois, o Ípsilon tenta confirmar a futurologia de Bloom – “é uma coisa que vai chegar aqui”. Há ficção “gay” e lésbica portuguesa? Promovem-se romances sem qualidade só porque são de autores “gay”? O que é isso de literatura LGBT (Lésbicas, “Gays”, Bissexuais e Transgénero) e “Queer”. É preciso ser homossexual para ter uma obra considerada “gay”, lésbica ou “queer”?
Autores como Eduardo Pitta, Frederico Lourenço ou Pedro Gorski publicaram nos últimos anos contos, romances, escrita autobiográfica e ensaio que se incluem na definição de “literatura gay”. Surgiram nas livrarias estantes dedicadas ao género, tendo sido criada uma editora, a Bico de Pena, destinada à literatura LGBT. E não estamos a falar de “nichos”. O “mainstream” não passa ao lado: em Setembro, a escritora Rosa Lobato Faria vai publicar “A Alma Trocada” (Asa), romance em que o narrador é um homossexual que “sai do armário”.
A criação da Bico de Pena (em 2005), que dedica uma colecção em exclusivo aos títulos LGBT, a Pena de Pavão, parece ser a ponta de um “iceberg” de mudança. Mas, na verdade, em todo o catálogo só foi editado um livro de contos de um autor português: “As Lágrimas de Bibi Zanussi e Outros Contos”, de Pedro Gorski (pseudónimo de um pintor).
Quando a editora foi lançada, o objectivo era, por um lado, “explorar um nicho de mercado com uma oferta relativamente escassa”; por outro, havia o desejo de ver publicados autores de destaque desconhecidos em Portugal.
“É certo que Edmund White, Gore Vidal, Allan Hollinghurst e Sarah Waters eram já publicados no nosso país. Mas foi com prazer que apresentámos Augusten Burroughs, Terenci Moix, Rita Mae Brown e Dennis Cooper”, diz Joana M. Neves, assistente editorial da Bico de Pena.
As vendas “têm sido positivas, embora lentas”. Não se esperava um “boom”. Apostou-se nos “long-sellers”. Inesperada, já agora, foi a reacção “conservadora” de alguns livreiros ao design das capas. “A capa do livro ‘As Lágrimas de Bibi Zanussi e Outros Contos’, uma foto de um negro com uma flor entre nádegas, chocou alguns livreiros, que se recusaram a ter ‘livros desses’ em exposição. Mas devemos também salientar que diversos livreiros declararam que já fazia falta dar esta visibilidade à literatura LGBT.”
Curiosamente, diz Joana, tem havido comentários de agentes, editores e até de críticos acerca da própria “categoria” de literatura gay. “O que nos leva, perguntam-nos, a publicar um livro na colecção de literatura ‘gay’? Para quê esta ‘classificação’?”
É uma discussão ampla, que não se aplica só à literatura. “A nossa postura tem sido a de que as categorias valem o que valem, mas tendo em conta o quanto o nosso mercado é ‘inundado’ de novidades, os livros têm de se destacar. Atribuir-lhes categorias é uma forma – simplista, mas eficaz – de lhes dar destaque. O que nos leva a publicar um livro na colecção Pena de Pavão é um critério igualmente simplista, se se quiser: ter qualidade literária e como temática uma relação homossexual (aquilo que evitamos a qualquer custo é tudo o que seja mal escrito ou minimamente panfletário)”.

[…]

Pedro Gorski, o autor de “As Lágrimas de Bibi Zanussi…”, optou por usar um pseudónimo quando publicou o livro porque “oferecia a falsa segurança de separar por algum tempo esta aventura” da sua “actividade profissional já decorrente”. Enviou o manuscrito para dez editoras, não só para aquelas que já haviam divulgado obras “gay”. “A minha ingenuidade começou a ser evidente à medida que os meses passavam sem resposta. Até que uma amiga me telefonou de Atenas, em inspiração sibilina, indicando-me a direcção correcta. Foi, assim, o manuscrito parar ao grupo editorial em que acabara de nascer a Bico de Pena, onde o género literário em que me inscrevia era uma aposta forte, junto de outros temas de sublinhada irreverência.”

[…]

Literatura Lésbica, onde estás?

Nem ousada, nem pudica: a ficção lésbica feita por autoras portuguesas e publicada em editoras com visibilidade, essa é que parece não existir. Há livros que têm personagens homossexuais e lésbicas, como “Os Sinais do Medo”, o primeiro romance de Ana Zanatti (2003, Dom Quixote) – o segundo, “Agradece o Beijo” (2005), tem personagens transexuais. Publicadas em editoras com menor visibilidade existem “Alice e o Abismo”, de Leonor Campos (Novo Livro, 2002) e “Descobre-me”, de Sandra Soares (Occidentalis, 2006). E ainda romances de Marta Tasmânia em edições de autor. Mas parece tudo diluído na nuvem da “literatura feminina” e da teia dos afectos.
“A escrita de autoras assumidamente lésbicas não existe em Portugal ou existe com qualidade muito pobre”, diz a activista “queer” Anabela Rocha. “A escrita de práticas assumidamente lésbicas por autoras mulheres vai existindo, mas em escritas também sem qualidade literária e que repetem narrativas identitárias ainda presas ao medo de ser homossexual.”
Acrescenta: “Na poesia portuguesa temos maior maturidade no erotismo lésbico e maior consciência feminista. Com tão poucas autoras a assumirem uma literatura feminista, pós-colonial; com tão pouca literatura feita por mulheres a reflectir sobre a diversidade da vida das mulheres em Portugal, não admira que não exista literatura lésbica.”
Como é que pode haver? “Não necessariamente apostando apenas no grande romance, mas apostando no romance popular, como muitas colecções em França e Espanha. Aquilo a que podemos chamar uma literatura urbana de modelos de vida segura, tranquila e feliz. Não é um retrato real de todas as vidas lésbicas; mas é uma esperança e uma boa leitura de praia”, conclui.
Em Setembro, uma mulher, Rosa Lobato Faria, 75 anos, publicará nas Edições ASA “A Alma Trocada”. Tem como personagem principal Teófilo, um homossexual. “Este livro não é diferente de nenhum outro; por acaso, a personagem é homossexual.”
Teófilo apareceu-lhe e ela deixou-o falar, tal como as outras personagens dos seus livros. “Teófilo é uma personagem como outra qualquer”. Agradou-lhe a ideia de um homossexual contar a sua história e sair do armário. Abordou o tema do ponto de vista social, não gosta de sociedades preconceituosas.
Não teve nenhuma intenção prévia. “Nunca me passaria pela cabeça escrever um livro para o inserir num género”. Diz que nem é de ir em modas. Mas a verdade é que desde que se soube que escreveu sobre um homossexual a solicitação dos “media” não tem parado. “Gostei daquele homem cheio de fragilidades porque não o deixaram crescer como ele devia ter crescido. É um homem que me é simpático.” Para escrever este livro não fez pesquisa porque a personagem é seu contemporâneo. Considera que o tema principal do romance é a “ideia da escolha das famílias do coração, em contraponto com as famílias de sangue”.
“Se isto puder ajudar alguém, já valeu a pena escrever o livro. Ajudar alguém a ser feliz na sua plenitude sexual. Mas não o fiz com essa intenção”, diz.
Ali Smith, a autora escocesa de “A Acidental”, romance premiado com o Whitbread Novel Award e publicado pela Bico de Pena, quando passou por Lisboa em 2006 disse ao Ípsilon que quando se trata de livros é importante não metê-los em guetos. Assumidamente lésbica, falava de categorizar livros em “gay e lésbicos”, de “auto-ajuda”, “thrillers”. Sabe a importância de ser escocesa, homossexual, ex-católica. Mas lembrava: “Eu não sou o meu livro, nunca serei o meu livro ou mesmo um livro. Sou uma pessoa e os livros têm que fazer o seu trabalho. Tem que ser livros e têm que ser donos da história que contam.”
Voltámos ao princípio, a Harold Bloom a falar dos seus escritores preferidos: “São todos homossexuais, mas que me interessa saber se eles preferem dormir com homens ou com mulheres?”»

Artigo completo no suplumento Ípsilon, Público, sexta-feira 24 de Agosto de 2007

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