terça-feira, 4 de dezembro de 2007

Imprensa:

«O novo Perrotta tem religião, sexo e conservadorismo na era Bush

É um dos livros em destaque nas livrarias e imprensa americanas. “The Abstinence Teacher”, de Tom Perrotta (“Pecados Íntimos”), acabou de ser editado nos EUA. É um retrato moral e político da América que vai sair em Portugal daqui a uns meses.
Joana Gorjão Henriques

“Algumas pessoas gostam.” Algumas pessoas gostam de sexo oral, entenda-se. E há outras que não gostam que se fale disso com adolescentes. Com aquela frase, que cai como bomba silenciosa numa sala de aula, uma professora de Educação Sexual nos seus 40 anos é posta debaixo do tapete pelo puritanismo americano. Ruth, “The Abstinence Teacher”, é a mulher do título do novo livro do americano Tom Perrotta, autor de “The Little Children” (adaptado ao cinema por Todd Field e editado pela Bico de Pena como “Pecados Íntimos”). O novo Perrotta – que está em destaque nas livrarias e imprensa americanas – será editado pela mesma editora daqui a largos meses, muito provavelmente quando sair a versão cinematográfica filmada por Jonathan Dayton e Valerie Faris, os realizadores de “Little Miss Sunshine”.
Mãe de duas filhas adolescentes, liberal, sexualmente abstémia – mas não por opção, aconteceu depois do divórcio –, Ruth é obrigada a recalcar as suas convicções e a rever o programa das suas aulas à luz da virgem mas “sexy” JoAnn Marl (algures no livro, Ruth mostra um certo fascínio pela forma como JoAnn Marl controla os impulsos com o seu noivo “super hot”). Ao longo da centena de páginas exclusivamente dedicadas a Ruth, é JoAnn Marl quem representa o papel da personagem que traz a desordem, encarnando, por assim dizer, o mundo que Perrotta quer descrever, o fundamentalismo católico evangélico, tema cada vez mais presente nos EUA à medida que avança a influência política deste grupo – e com ele o autor quis retratar o choque cultural no interior na América.
Depois, JoAnn Marl praticamente desaparece; entra em cena Tim Mason, o treinador de futebol das filhas de Ruth, um ex-toxicodependente que encontrou a salvação numa Igreja Evangélica e põe as alunas a rezar depois do treino (e dá-se a explosão em Ruth, que até ali, surpreendendo-se a si própria, assumira o papel de hipócrita). A partir daqui, Ruth vai dividir o protagonismo com Tim – gesto arriscado do autor, mas não original, esse o de desviar repentinamente o foco da personagem central, algo que Perrotta viu como um desafio, confessou ao “The A.V.Club”.
“Mais tarde, quando Tim saiu, (Ruth) percebeu […] que desejava secretamente ver-se enredada numa daquelas narrativas sentimentais de ‘opostos que se atraem’, tão atraentes para escritores de sitcoms ou comédias românticas. […] Felizmente para Ruth, esta fantasia ridícula caiu imediatamente a seguir ao contacto com a realidade.” (pág. 183). A primeira parte é justamente o que acaba por acontecer; a segunda é uma boa piada (e uma estratégia narrativa) do escritor.
Mas, em “The Abstinence Teacher”, romance de subúrbio, o que interessa a Perrotta são os temas (aliás, ele começa sempre as suas histórias pelos temas ou pelo cenário, só depois vêm personagens e enredo): religião, sexo e conservadorismo na era Bush, numa América que tem andado demasiado preocupada em olhar para o fundamentalismo islâmico e pouco atenta ao que se passa no seu próprio país. Mais discreta, aparece a família, com a relação entre irmãos vista de forma ternurenta e a angústia dos pais quando percebem que os filhos afinal não são feitos à sua imagem, são pessoas que seguem caminhos muito opostos aos seus. O “New York Times” lembrava que, “com o programa de abstinência e disputas sobre o que pode ser ensinado nas escolas a serem frequentemente primeira página nos jornais, ‘The Abstinence Teacher’ atinge as falhas sociais importantes.”
De fora, diríamos que é também um retrato moral e político de uma América feito por um retratista que não tem especial vontade em se colocar de nenhum dos lados – ou pelo menos, que não faz dos evangélicos completos diabos, mesmo que use por vezes a ironia.

A eleição de Bush
Tom Perrotta, 46 anos, que cresceu num subúrbio, num meio trabalhador, com “pessoas com um olhar conservador sobre os valores sociais”, decidiu escrever este livro depois das eleições presidenciais de 2004, quando Bush ganhou ao democrata John Kerry, o que o deixou “perplexo”, sobretudo “pela sensação de que a direita cristã estava em marcha e tinha uma maioria política”. “Sabíamos que as coisas iam mudar a favor deles e realmente senti, como muitos, que talvez não os tivesse levado suficientemente a sério, não apenas como um movimento político mas como um fenómeno americano” (“The A.V. Club”). Não teve uma aproximação ao assunto como Tom Wolfe, disse ao “New York Times”, mas andou por algumas igrejas evangélicas e passou algum tempo a “googlar” coisas como “Christian Sex: The Godly Way To Spice Up Your Marriage”, o manual usado pela personagem Tim e pela segunda mulher, Carrie, que basicamente introduz a tal “nuance” humana em criaturas que podiam ser, aos nossos olhos, aberrações.
Perrotta deu por si a surpreender-se com o tema da abstinência – achava que seria uma coisa bem difícil de vender aos jovens numa cultura tão sexualizada como a americana, mas afinal “tem tido imenso sucesso”. “Temos sentido uma contracultura conservadora muito forte”, disse à CBS. À “Nerve.com” comentou: “Uma das coisas que mais me impressiona em toda esta coisa da abstinência é o total medo da experiência. Até uma coisa tão simples como ficar com o coração partido. Eu parti o meu coração duas ou três vezes e isso ensinou-me algumas coisas sobre as relações. Torna-nos mais espertos. Torna-nos mais doces para os outros. (…) Mas, se formos a uma reunião de abstinência, a mensagem do amor é: ‘O teu coração é uma coisa pura e de cada vez que alguém aparece arranca-te um bom pedaço dele.’”
Autor de seis romances, dois deles adaptados ao cinema (além de “Little Children”, “Election”, realizador por Alexandre Payne), e com uma escrita limpa e seca que se inscreve, segundo o próprio, na linhagem de Raymond Carver, Hemingway ou Tobias Wolff, Perrotta tem sido várias vezes referido como autor de romances de subúrbio – é o cenário dos seus livros. É difícil em “The Abstinence Teacher” encontrar personagens odiosas porque há a sensação que o escritor gosta de todas – até JoAnn é curiosa na sua provocação –, e se há coisa em que o autor está à vontade é no retrato feminino. Começou “The Abstinence Teacher” com Ruth mas, às tantas, deu por Tim Mason a sabotar a história. A sensação com que ficámos foi de uma certa perda: depois da construção inicial brilhante de Ruth, até onde é que Perrotta teria ido se deixasse que uma personagem feminina tomasse conta da narrativa?»


Ípsilon, Público, 30 de Novembro de 2007

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