segunda-feira, 19 de novembro de 2007

Excerto:
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O Banquete do Amor


«– Olá – diz ele –, Charlie. Que diabo fazes tu aqui? O que é que se passa?
Quando me sento ao lado dele, consigo ver-lhe os óculos, que reflectem o quarto minguante da Lua e uma ténue estrela cadente. Na penumbra, ele tem um rosto suave e atraente, cabelos grossos encaracolados e um sorriso amável e desarmante, como o de um empregado bancário que ainda não decidiu se o nosso historial financeiro nos permite pedir um empréstimo ou não. Os seus olhos são grandes e pensativos, como os de um sapo. Concluo rapidamente que, se ele está sentado aqui fora, neste bando de parque, neste momento, é porque deve ser um homem particularmente infeliz, insone, atormentado ou mal de amores.
– Olá, Bradley – respondo. – Nada de especial. Vim dar uma volta. É uma noite de Verão e estou com insónias. Veja que também ainda estás acordado.
– É – diz ele, assentindo desnecessariamente com a cabeça –, é verdade.
Ficamos ambos calados, à espera. Por fim, pergunto-lhe:
– A que propósito é que estás a pé?
– Eu? Oh, estive ocupado até tarde, a arranjar uma janela de minha casa. O contrapeso da guilhotina soltou-se da roldana e eu estive a tentar tirá-lo de dentro da parede.
– Um trabalho que não é fácil.
– Pois não. Seja como for, desisti e vim passear o Bradley-cão, já que não conseguia consertar a janela. Lembras-te deste cão?
– Chama-se… como é que ele se chama?
– Bradley. Acabei de te dizer. Exactamente como eu. É mais simples chamar-lhe “Júnior”. Assim, não há confusões. É a minha companhia. Mas, pelos vistos, tu também não consegues dormir, pois não? – pergunta ele, de olhos fixos a meia distância, como se estivesse a falar consigo próprio, como se eu fosse uma intimação dele. – Já somos dois. – Recosta-se. – Três, se contarmos com o cão.
– Acordei a ver coisas – explico.
– Que coisas?
– Não me apetece falar sobre isso – respondo.
– Está bem.
– Oh, olha, acordei a ver manchas.
– Manchas?
– Sim, Uma espécie de manchas à frente dos olhos. Mais pareciam dentes de rodas.
– Como se fossem engrenagens ou uma coisa desse género?
– Acho que sim. Rodas com dentes a girarem e depois a aproximarem-se umas das outras, até começarem todas a rodar ao mesmo tempo, com os dentes encaixados uns nos outros. – Esfrego o braço, picada de mosquito.
Na sombra, um lado do rosto dele parece prestes a desmoronar, como se o esforço de fazer uma cara alegre tivesse finalmente fracassado e ele tivesse perdido o seu optimismo diurno. Suspira e coça o Júnior atrás das orelhas. Em resposta, o cão arreganha um enorme sorriso.
– Engrenagens. Nunca tinha ouvido essa. Pelos vistos, tu não dormes melhor do que eu. Somos dois soldados do exército da insónia. – Espreguiça-se e estica o corpo para inspirar fundo. – Uma irmandade. De homens e de mulheres. Sabias que a Marlene Dietrich era uma insone crónica?
– Não, não sabia.
– Sabes o que ela fazia para se entreter à noite?
– Não, não sei.
– Fazia bolos – diz-me ele. – Li isto no jornal de domingo. Fazia pães-de-ló e depois, durante o dia, oferecia-os aos amigos. A Marlene Dietrich. Tinha o ar que tinha, aqueles olhos, porque não conseguia dormir bem. Ora eu – diz ele, ajeitando-se no banco –, eu fico aqui quieto, muito quieto, como aquele tipo, como é que ele se chama?, o bom do Buda, a pensar no mundo, no mundo em que eu e tu vivemos, e chego a uma série de conclusões. Conclusões e soluções. Ultimamente, tenho andado a pensar em soluções extremas. Como se costuma dizer, problemas extremos requerem soluções extremas.
– “Soluções extremas”? De que é que estás a falar? E não me incluas na tua irmandade. Eu vim só dar um passeio pelo bairro.
– “Um passeio pelo bairro”! Meu Deus – diz ele, apontando-me um dedo como se fosse uma pistola –, tens sorte se um carro-patrulha não te levar dentro.
– Oh, eu sou uma pessoa respeitável – respondo.
– Ouve-me só as coisas que tu dizes. “Respeitável”! Estás vestido como um vagabundo. Um rufia. É ilegal andar pelas ruas à noite, nesta terra, não sabias? – Levanta-te para me olhar de alto a baixo, com ar interrogativo. Ao que parece, não gosta do que vê. – Dá-te um ar de perigo para a segurança pública. Acusam-te de vagabundagem e arrastam esse teu coiro para a cadeia. Já não é permitido passear à noite, a menos que tenhas um cão. O cão – aponta para o seu próprio cão – torna os passeios legais. O cão torna a coisa legítima. Eu tenho um cão. Tu devias arranjar um cão. É melhor um cão de gente fina, como um collie ou um golden retriever, um cão com licença do estado. Mas qualquer cão serve. Vai por mim: as pessoas felizes estão todas em casa a dormir, enroscadinhas juntas, imersas nos seus sonhos. – Diz estas palavras com desprezo. – Os bem-afortunados. – Senta-se, mas continua com ar alvoroçado. – Os malditos bem-afortunados… Então, conta lá: qual é o teu problema? – Dá-me um sorriso de gnomo. – Peso na consciência? Estás com um bloqueio e não consegues escrever?
– Não, já te disse. Acordei desorientado. Isto está constantemente a acontecer-me. Deve ser de andar a pensar num livro. Tenho de sair à rua para que passe. Seja como for, eu já tenho um cão.
– Não sabia. Onde é que ele está? – Olha à sua volta, fingindo que está à procura.
– A dormir. Ela não gosta de sair à rua comigo, à noite. Não gosta de me ver assim desoriendado.
– É esperta. Então quer dizer que não sabes onde é que estás? É isso?
– É. Mas neste momento sei onde estou.
– Talvez estejas demasiado metido no mundo da ficção. Bom, não ligues ao que eu digo. Mas, ouve, já que aqui estás, conta-me como é que esse teu novo livro começa. Qual é a primeira frase?
Ponho-me a tentar arrancar uma pastilha elástica do sapato.
– Não. Eu não funciono assim. Não conto essas coisas ao deus-dará.
– Anda lá. Sou teu vizinho, Charlie. Conheço-te desde… há quanto tempo é que nos conhecemos?
– Doze anos – respondo.
– Doze anos. Achas que vou roubar-te a tua frase? Eu nunca faria isso. Eu não faço essas coisas. Não sou escritor, graças a Deus. Sou um homem de negócios. E artista. Vá. Conta lá. Diz-me como é que o teu romance começa.
Recosto-me por um instante.– “O homem” – recito –, “– eu, e mais ninguém, ao que parece – acorda de sobressalto.”»

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