segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Imprensa:

«Em diferido Eduardo Mendicutti

Os ínvios caminhos da santidade

Autor de mais de uma dezena de romances, Eduardo Mendicutti conversou com Os Meus Livros a propósito da edição em português de Não Tenho Culpa de Ter Nascido Tão Sexy, um livro que a superficialidade classificaria como "provocatório" e que se debate com questões tão universais como a identidade, a memória e o tempo. Sara Figueiredo Costa

O título pode levar a equívocos, iludindo sobre a profundidade do conteúdo. Eduardo Mendicutti tem uma obra extensa publicada em Espanha e está finalmente traduzido entre nós, com Não Tenho Culpa de Ter Nascido Tão Sexy (com a chancela da Bico de Pena). O livro é um road novel inesperado onde o caminho se faz muito mais de descobertas emocionais e da inevitável sombra do regresso do que dos avanços físicos entre paragens.

É, para além disso, uma obra que dialoga explicitamente com uma tradição literária que lhe é anterior, apresentando remissões frequentes para alguns dos monumentos da literatura em castelhano, como Dom Quixote, de Cervantes, ou os textos místicos de Santa Teresa de Ávila e S. João da Cruz. E sobre o diálogo com a tradição literária espanhola, o autor defende que "é muito interessante quebrar a tradição, mas é mais interessante conhecê-la, antes de qualquer outra coisa. E essa é, aliás, a única forma de a quebrar, de a desafiar. Acredito que uma forma de adaptar essa tradição que nos antecede é considerá-la noutros termos, com outros elementos. E isso até já o tinha experimentado no livro Los Novios Bulgaros, onde a personagem principal é totalmente quixotesca e onde a estrutura dos títulos é uma referência directa à obra de Cervantes".

O facto de a personagem central de Não Tenho Culpa de Ter Nascido Tão Sexy ser uma mulher que em tempos foi um homem poderá focar as atenções do romance no tema da transexualidade e na inevitável suspeita de provocação, já que Rebecca de Windsor - assim se chama aquele que um dia foi Jesus López Soler - decide procurar o caminho da santidade. Mas o que de facto interessou a Eduardo Mendicutti foi o tema da identidade e da sua construção: "Um dos impulsos que todos temos é o de querer enriquecer a nossa personalidade através da construção de uma identidade própria. A identidade não é algo estático e invariável, e se há um conflito com o que é, impõe-se a necessidade de tornar mais complexa a personalidade, conquistando algo novo". A escolha de uma personagem transexual revelou-se pertinente para esta reflexão em torno da identidade, na medida em que acrescenta de modo quase visceral um tópico intrinsecamente relacionado, o da memória. Como nos explicou o autor, "a memória é uma forma de nos inventarmos, na medida em que só recordamos o que queremos, ou do modo que queremos; mas apesar disso, as recordações que guardamos têm uma base real, e o que me interessou foi procurar perceber, no caso de um transexual, até onde chega o bisturi. Ao corpo físico, certamente, mas chegará à memória? Será capaz de apagar as recordações anteriores, verdadeiramente hostis e dolorosas?" No caso de Rebecca, as memórias permanecem, e um dos desafios do seu percurso pelos caminhos da santidade será o de aprender a conviver com elas. Mas Rebecca é uma personagem ficcional, e à ficção não cabe resolver unanimemente as dúvidas da realidade.

Espiritualidade e humor
O caminho de Rebecca de Windsor em busca da santidade estabelece um paralelismo propositado com as experiências místicas de Santa Teresa de Ávila, decritas em As Moradas. Também Rebecca, aspirando à condição de santa, passará por sete moradas, acompanhada por um jovem musculado com vagas conotações com São João da Cruz, e a sua aprendizagem acabará por passar mais pela aceitação da inevitável degradação do corpo que tanto lhe custara a conseguir do que pela assunção de uma forma de espiritualidade que não é a sua. Este contraste entre o carnal e o espiritual não é gratuito, como nos explicou o autor. "A ideia de que as emoções associadas à espiritualidade não têm nada a ver com a vertente corporal é absurda. Somos como somos e as nossas emoções surgem também do nosso corpo, da nossa carne, das nossas pulsões. Por outro lado, eu não fui o primeiro a relacionar as experiências místicas com as pulsões físicas e sexuais, e só alguém com dificuldade em aceitar o seu corpo poderia afastar ambas as coisas de modo definitivo".

Para tornar credível o paralelo com os místicos espanhóis e conseguir que o modo de falar de Rebecca remetesse para estes textos sem perder a coloquialidade que lhe é inerente, Mendicutti dedicou muito tempo à leitura de Santa Teresa de Ávila e São João da Cruz. "Naturalmente, li e reli todas as obras de que dispunha, de modo a habituar-me à sonoridade da linguagem e às suas características quase pictóricas. Claro que no momento de recriar essa linguagem e às suas características quase pictóricas. Claro que no momento de recriar essa linguagem, tive de abdicar de algumas coisas, para conseguir alguma fluidez com marcas de contemporaneidade. Foi exercício complexo, principalmente até encontrar o tom certo, mas o resultado deixou-me satisfeito", confessa.

Apesar da seriedade com que se aborda o percurso de Rebecca de Windsor, há momentos em que o humor assume um papel essencial na exposição de contradições sociais ou religiosas e nas deambulações monologais da personagem em reacção ao mundo que agora descobre. E o autor confirma a importância que lhe atribui e o potencial que lhe encontra: "na literatura, o humor é um instrumento extremamente rico e muito maleável; admite muitos registos e tons, permite, quer uma ironia quase subterrânea, quer um tom mais agressivo. Com o humor pode ser-se delicado, lírico, combativo, provocante, corrosivo, destrutivo, perverso, carinhoso... é um registo que admite todas as possibilidades e eu espero ter conseguido, nos meus livros, e neste romance em particular, tornar presentes dessas possibilidades".

O próximo livro
O próximo livro de Eduardo Mendicutti a ser editado em português, igualmente pela Bico de Pena, intitula-se Califórnia e passou por um processo de gestação que durou vários anos, levantando a suspeita de que talvez nunca viesse a escrever-se. Sobre isso, diz-nos o autor: "Califórnia era um romance que estava às voltas na minha cabeça há anos. Eu ia muito à Califórnia quando era mais novo e sempre me pareceu que tinha de utilizar as coisas que vi e as experiências que tive para contar o que vivi, porque a vida não é ficção e para a ficção é preciso saber modificar os elementos da realidade a que se recorre. Mas durante muito tempo, não consegui encontrar um sentido, uma história, para esse conhecimento e essas experiências. Até que encontrei esse sentido naquilo que veio a ser a segunda parte do romance e percebi todo o percurso do personagem." A acção de Califórnia acompanha os anos de juventude de Charlie naquele estado americano e o seu regresso, já adulto, a Espanha, mostrando as mudanças que se produzem no seu modo de pensar e agir e deixando implícita a certeza de que toda a gente pode mudar, "mesmo que seja para melhor", brinca o autor. Se no início do romance, Charlie se preocupa pouco com o que se passa em Espanha e com as mudanças que a querda de Franco poderá trazer, preferindo viver sem repressões a sua sexualidade e a sua liberdade, na segunda parte acompanhamos Carlos de regresso ao seu nome espanhol e em busca de uma cidadania que implica um assumir de responsabilidades que nunca lhe interessou. E esse é, afinal, "um regresso à Califórnia, agora percebida como um estado de espírito, um local onde esperamos por dias de sol mesmo que chova a potes, proque na Califórnia real chove muitíssimo!"

Apesar de Mendicutti ser um escritor com obra extensa e consolidada, dificilmente se salva da edituqeta de "autor de literatura gay". Contudo, o autor não se mostra disponível para atribuir demasiado peso à eterna moda das etiquetas. "Os escritores que escrevem livros onde a temática gay está presente costumam revoltar-se muito com essa etiqueta, porque isso implica que serão avaliados segundo um ponto de vista preconceituoso. E há duas possibilidades perante isso: aceitar o preconceito e recusar a definição (não a etiqueta, mas a própria definição!) de 'literatura gay', ou recusar o preconceito, recusando também a ideia inerente de que a temática gay é inferior a qualquer outra, ou vergonhosa, ou desinteressante. Quando falo de 'literatura gay', não estou a falar de um género, mas sim de uma temática, reflexo de uma certa 'cultura', com vivências específicas e com uma linguagem, não necessariamente verbal, própria. E isso não significa mais nem menos do que qualquer outra temática; convive com outros livros de outras temáticas e está ao alcance de qualquer leitor, independentemente das vivências e da sua orientação sexual".

Sem dar demasiada importância à etiqueta de que tanto se fala, mas igualmente sem recusar o seu conteúdo, Mendicutti nega qualquer intenção de compartimentar aquilo que escreve, facto que se confirma com a leitura deste Não Tenho Culpa de Ter Nascido Tão Sexy, tão específico na construção de uma personagem inesquecível como universal no questionamento do modo como a memória se constrói na identidade de cada ser humano.»

Os Meus Livros, Novembro de 2007

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