segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

Imprensa:

«E se numa noite de Verão um escritor

E se numa noite de Verão um escritor (um escritor que conhece Shakespeare, obviamente, como toda a gente) acordasse sobressaltado e fosse dar uma volta pelo bairro tranquilo de classe média onde vive e descobrisse "um solitário casal nu" representando, sem saber, um sonho de amor de shakespereano no centro de um estádio deserto? No caso de "O Banquete do Amor", Charles Baxter, o próprio, encontra depois um vizinho, que acaba de separar-se da segunda mulher, sentado com o cão num parque infantil (ambos, homem e cão, se chamam Bradley), a meditar nos mistérios do amor: "Realmente não tem nada a ver com o que eu imaginava, quando andava no liceu e me punha a pensar como é que o amor seria". É este vizinho que sugere a Baxter, o Baxter personagem secundária e primeiro narrador da história, que escreva um livro intitulado "O Banquete do Amor". E dá-lhe o programa: "Deixa toda a gente a falar! Vou mandar-te pessoas, pessoas verdadeiras para variar, seres humanos que existem realmente, e tu vais ouvir o que eles têm a dizer durante um bocado. Toda a gente tem uma história para contar e nós vamos começar a contar-te as histórias que temos".
Exposto o assunto desta maneira, tratar-se-á de ouvir contar a autobiografia sentimental (e sexual, evidentemente) de pessoas "verdadeiras" –, põe-se o dispositivo em marcha no capítulo seguinte. Como no "Decameron", de Boccaccio, ou nos "Contos da Cantuária", de Chaucer, sucessivos narradores tomam então a palavra: Bradley (o homem, não o cão); a primeira mulher dele, que o deixou quando se apaixonou por outra mulher; uma jovem chamada Chloé, empregada do restaurante de Bradley (pintor nas horas desiludidas: "Banquete do Amor" é também o título de um quadro dele), que diz que o sexo com o namorado era "tão bom […] que achámos que devia haver maneira de ganharmos dinheiro com isso" (e hão-de ganhar); um casal de intelectuais judeus de esquerda (vizinhos de Bradley), ele sendo um professor universitário de filosofia que quer escrever um livro "sobre Kierkegaard e o seu admirador Wittgenstein" (digamos que este professor, com as suas insistentes referências ao filósofo dinamarquês, é o amparo erudito e "sério" do tema do romance); a segunda mulher de Bradley…
O assunto nuclear do romance – o famoso amor –, o facto de todos os narradores estarem relacionados com Bradley e a montagem das suas narrações, que faz com que a voz de cada um deles regresse uma e outra vez interpolada nas outras, fazem a "unidade" do livro. A montagem tem outra consequência: apesar de as histórias serem "paralelas", o romance progride temporalmente. A difícil comunicação entre pais e filhos (outra modalidade do amor) é um subtema do livro.
A certa altura, Lisboa aparece na história. Como cidade "imaginada" pela insónia do estudioso de Kierkegaard, que deve ter andado também a ler Bernardo Soares. Vem descrita como "cosmopolita, mas letárgica" e "uma cidade em elegante declínio". O professor, que não lê português, senta-se numa esplanada "próximo do porto" a ler um jornal imaginário "em português imaginário". É um dos melhores momentos do livro "O jornal que imagino aborda assuntos triviais numa prosa ligeira e tão bonita que raia o cómico. É o paraíso, ler um jornal que só contém assuntos inconsequentes, escrito por prosistas pretensiosos. Um ladrão rouba uma carteira a uma mulher numa loja de cabedais, tudo isso relatado num estilo que teria feito jus a Gibbon […]. Noutra secção do jornal, um gato é dado como desaparecido, mas a história foi escrita por G.W.F. Hegel e mal se dá pelo gato. […] Noutra página, Proust narra um jogo de futebol, Heine põe um apartamento à venda, Colette descreve uma discussão entre dois vizinhos. Virginia Woolf é responsável pelas páginas de economia […]".
Baxter é bom escritor e "O Banquete do Amor", não se comprometendo excessivamente, nem com a leveza levemente lírica e um pouco sentimental que lhe está na alma, nem com os acenos cúmplices à ironia meditativa da razão, lê-se bem. Fica-se até com pena de o romance não ser melhor. Mas não há dúvida: o amor na sua dimensão de entretenimento espiritual, pelo menos, está no ar do tempo.
Charles Baxter nasceu em 1947 em Minneapolis, nos Estados Unidos da América. Estudou inglês, ensinou escrita criativa, é professor na Universidade do Minnesota. Publicou contos, poesia, ensaios e romances. "O Banquete do Amor" é o seu terceiro romance. Foi finalista do "National Book Award" norte-americano e originou um filme, realizado por Robert Benton, que estreia esta semana.»


Mário Santos, Ípsilon, Público, sexta-feira, 25 de Janeiro

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