quinta-feira, 12 de junho de 2008

Crítica:

«Uma geração em fuga

Com as atenções centradas na eleição do 44.º presidente dos EUA, Gonçalo Paixão mergulhou num livro de uma geração de viragem marcada pelo 11 de Setembro

Diz a capa que este volume foi organizado pela premiada escritora inglesa Zadie Smith (autora de Da Beleza). Na realidade, e para quem ler o preâmbulo, não é bem assim. Conta ela que numa noite de bebedeira em Itália conheceu dois jovens editores que não só a fizeram assinar um contrato para a edição do seu próximo livro num guardanapo de taberna, mas também que lhe enviariam mais tarde esta compilação para ser editada em Itália. Como ela diz: "Foi um parto fruto do amor, mas quem sofreu as contracções foi outra pessoa."
Há em Geração Queimada da América a consciência de um mal-estar social. De uma instrospecção profunda sobre o amor, a vida, a morte, a efemeridade, a ingenuidade e a capacidade inata de nos observarmos. Da história doce de Matthew Klam que mostra como o amor é questionável e nessas questões crescemos e nos conhecemos, à profunda crítica social à América dos malls e da comida rápida de Jonathan Letham. É um livro mágico, contos saídos de uma geração que viveu a viragem de fortuna e felicidade da Era Clinton para a descoberta da pobreza do período Bush. São histórias que se bebem entre paragens do metro e onde realidade e ficção, futurismo e consciência social se fundem num só volume de várias histórias, como uma janela sobre uma geração cuja impertinência nos deixa felizes por haver um tempo de pausa entre cada uma, permitindo cheirar uma realidade na qual nos revemos mas que sentimos não ser nossa. É uma geração que publica as primeiras obras no virar do século e tem nas mãos uma América deprimida, descontente consigo mesma e à procura de um rumo, em que o medo da morte, da velhice, da busca da eternidade parece importar mais que tudo. O volume conta com 19 dos mais brilhantes autores americanos.
Alguns exemplos: O volume abre com uma ficção científica hilariante sobre a decadência da América e a ideia de paternidade. Segue-se uma história de amor e das dificuldades de um jovem casal em sobreviver perante um conjunto de comezinhas realidades que corroem. Está recheado dos episódios mágico-trágicos em que a realidade é moldada.
Os Primeiros Homens, de Zadie Smith, é sobre a decadência da classe média americana, da juventude e da subversão dos papéis entre adultos e crianças. O protagonista fala de um herói com os dedos em forma de chave que abre portas. Centros Comerciais Invisíveis é uma comédia baseada nos enormes centros comerciais que povoam a América do Norte. Arthur Bradford relata a amizade numa família calma onde um evento inesperado muda tudo. Fantasia de Acesso é sob o peso de um mundo em mudança, numa metáfora perfeita e com um twist final surpreendente. Sam Lipsyte, com O Braço Mau, remete para a curiosidade e imaginação infantil a partir de uma mãe a morrer. Circulação é uma curiosidade sobre o funcionamento do mundo. Manual para Pontuar Doenças de Coração fala da genética, da genealogia, do amor e dos códigos de silêncio e sussurro que nos fazem comunicar sem falar.
Este conjunto de ficções devora-se e é indispensável para compreender uma geração cansada e desiludida, com demasiado medo da morte e demasiadas culpas por ser rica, branca e de um país rico. Mas também indispensável por ser luminoso, inspirado e infinitamente rico numa cultura que julgamos conhecer.»

Time Out Lisboa, 26 de Março

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